sábado, 21 de maio de 2016

A trajetória de Eduardo Gonçalves Ribeiro - Por MÁRIO YPIRANGA MONTEIRO






 PREFACIO


 O falecimento de Eduardo Ribeiro, ocorrido a 14 de outubro de 1900, num afastado subúrbio de Manaus, em uma casa de sua propriedade e residência, continua e continuará em mistério. (Agnelo Bittencourt)

O governo do Estado do Amazonas salda uma dívida moral para com a figura do dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro ao resgatar-lhe a memória. Era um compromisso que se vinha protelando na base da incúria de uns e da carência de sensibilidade de outros. Muita gente detesta ser coberto pela sombra dos mortos ilustres. E a sombra póstuma do capitão de Estado-Maior de Exército, bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas, deputado estadual, inaugurador da República no Amazonas, governador duas vezes, sempre obscurecia a epifania mal-concertada de quantos o sucederam na emulação. Nascido da corajosa iniciativa do governo amazonense, através de sua representação em São Paulo - Secretaria para Promoção do Desenvolvimento -, cuja orientação técnica está a cargo do professor Alfredo Mário Rodrigues Lopes, este documentário tardio se afigurava difícil de ser proeminado por muitas razões que não se discutem aqui, porém que é necessário lembrar apenas uma: a busca de documentos de origem familial, que constitui quase que a petra scandali de todo o fundamento da obra. A dificuldade de situar a biografia do dr. Eduardo Gonçalves R.ibeiro na etapa da juventude pareceu-nos desde logo uma das remoras que só encontraria equivente no mistério de sua morte. Os extremos se tocam. O álbum é falho neste sentido, justamente ali onde seria jubiloso falar da infância do genial administrador, tanto quanto seria piedoso e necessário à História, sine ira et studio, elencar os episódios de sua morte. De qualquer modo, este álbum responde a muitos interrogantes que várias gerações desejariam saber esclarecidos de forma menos untuosa e mais chocante. Estas páginas abrem um ciclo de vida para que nelas se leia a verdade sobre uma administração que não procuramos vestir de elogios nem despojar de seus méritos. É talvez uma revelação excessivamente episódica, marcada por numerosos flagrantes que a muitos autores pareceriam despidos de oporturlldade, porém que aqui apenas constituem membros de um corpo que resultaria mutilado se fossem alijados. É igualmente uma homenagem do historiador amazonense ao administrador que soube aproveitar-se da oportunidade econômica para apressar o desenvolvimento da cidade onde nasci. Do que ele realizou, produto de suas idéias próprias ou de projetos sancionados, faz-se aqui o reconhecimento imorredouro, grava-se a nossa gratitude perpétua.

MÁRIO YPIRANGA MONTEIRO

Livro : "NEGRITUDE E MODERNIDADE"

Manaus, outubro de 1900


                          Casa de Eduardo Ribeiro

CAPÍTULO 1


UM ESTRANGEIRO NA LEGIÃO AMAZÔNICA


 As  duas  últimas décadas do século passado foram particularmente de grande influência nos destinos do Estado do Amazonas. Acontecimentos alicerçados em atividades sociais e econômicas prendiam a atenção e o tempo dos homens responsáveis pela orientação politica e administrativa. da região. Alguns desses acontecimentos traziam como sufrágios a co-participação popular; outros eram menos que, aparentemente, distúrbios de uma classe
de eruditos acampanados na torre do dissídio filosófico. A teimosa e freqüente alforria de escravos negros no Amazonas não obedece a nenhum plano ditado pelas amáveis predisposições dos mandatários oficia.is: talvez se tenha de dizer fosse ela um amplo gesto simpático de negritude, pois que, historicamente, antes das leis manumissivas amazonenses e federais, o rio Madeira notabilizou-se pela libertação iterativa. dos negros. É provável que isso seja uma nota discordante na história mas, na verdade, a economia amazonense nunca suportou um embasamento creditado no conhecido "instrumento oral" dos romanos. A escravidão negra não seria entre nós o recurso apropriado para o desenvolvimento econômico. Havia já a mão-de-obra quase gratuita que era o índio, conhecedor astuto e valente da selva., sabedor milionário das coisas pertinentes a seu meio. Essa a razâo maior por que a escravidão no território amazonense desempenhou papel medíocre, pois o acontecimento possuía seus tribunos exaltados, seus ardentes opositores, suas pugnaces e não pouco atrevidas assembléias defensivas. Não é de admirar, conseqüentemente, que as leis amparadoras do elemento servil houvessem saído privilegiadamente do Amazonas. A década de 80 do século passado inspirou realmente grandes movimentos intelectuais passivos em prol da politica regional e da cultura. Quase todos os benefícios recebidos pelo povo ou são executados nessa década, vindos de ó0 ou 70, ou são infibulados a um processo instaurado entre 80 e 90. Obedecendo a esse critério de impostação dos eventos principais, seria necessário, eqüitativamente, conceder espaço para um alusão ao pensamento humano que ditava. a atividade de que pendiam as leis. Nossa Assembléia Legislativa. tanto quanto a nossa Câmara Municipal eram verdadeiros focos de cerebrações engajadas a serviço da cultura e do progresso da região. Não seria demais salientar aqui o serviço prestado pela maçonaria nesse sujeito. Desde os primórdios, os pedreiros-livres e livres-pensadores se houveram às mãos contra os católicos extremos. As discussões na Assembléia Legislativa Provincial sâo sempre impregnadas de azedume, de objurgatórias entre os elementos dos partidos politicos. Quando a moção é de interesse geral do povo, porém, não se põe dúvida em aprová-la. Desse modo, as mais brilhantes leis de amparo à agricultura, à educação etc. são o resultado da compreensão unitária dos representantes do povo. Portanto alguns dos atos que emergem dessa oficina do pensamento, se não foram obj etos de pronta execução na década de
80, o foram na de 90. De passagem, daremos alguns exemplos do que ocorria: os projetos para a instalação de água encanada, luz elétrica, veículos motorizados ou tirados a animais, o Teatro Amazonas, aterros de igarapés, calçamento de ruas, instalação de serviços federais e regionais, apoio financeiro a invenções e à indústria, ajuda a estudantes pobres; um mundo de conquistas deve-se a essas duas décadas, mas não se deve admitir que apenas a elas. Já foram mencionadas acima as décadas de 60 e 70, mas supomos que elas não tenham sido ainda o verdadeiro fulcro do progresso amazonense, muito embora a biblioteca e o jornal se situem na década de 50. Isto posto, o homem amazônico começa a situar-se entre o espanto e a comodidade numa época em que, em outras províncias e em muitos países do mundo, a sociedade escravocrata não usufruía as mesmas comodidades que nós outros em Manaus.
É duvidoso que houvesse tido algo parecido com um "pogrom" contra os negros na Amazônia Ocidental, excetuando-se casos isolados de hostilidades pessoais. O gozo imediato de cidadania com ascensão reta para liderança está incluído na determinante social que nos apresenta homens da envergadura de Lima Bacuri, Eduardo Gonçalves Ribeiro, Raul de Azevedo e Esmeraldo Coelho, muito embora de origens diferentes. A terra acenava, com sua riqueza esbanjada - a "Golconda" de que nos fala Agnelo Bittencourt -, a todos os quadrantes do Brasil e os homens para ela corriam. Foi assim que tivemos gente dos mais remotos sertões do mundo - da China; Japão, Tirol, Alsácia, Grécia, Barbados, Calábria, França, Estados Unidos, Rússia, Arábia, Egito, Marrocos - e brasileiros em quantidade pronunciada, do norte ao sul. E toda essa gente deixou alguma coisa de seu, quando não fosse um pensamento criador era a força do braço construtór. Não prazia, portanto, ao amazonense a aquisição de negros escravos por duas razões simples: preço elevado das peças e concorrência habitual do índio e do caboco. Esse plantel social deve de haver elevado de muito o nível da sociedade amazonense da época e determinado uma triagem no pigmento selecionado pela avidez da terra. A razão essencial do nosso pensamento é que, olhando-se hoje essa sociedade, percebe-se a raridade da mancha escura na família. Principalmente no interior do Estado e, muito particularmente, nos rios Juruá e Purus, onde predomina a cor clara européia. Os elementos de cor presentes em nossa sociedade são oriundos do Maranhão e do Nordeste, principalmente Alagoas e Sergipe.
A década de 80 expirara com duas brilhantes apoteoses: a libertação dos escravos no Amazonas e a vigência da República, República que foi, no rol das coisas, uma dolorosa experiência para nós. A filosofia comtista não nos aproveitou: passamos de povo autônomo, social e economicamente, a enteados do governo federal, que explorou quanto pôde nossas possibilidades. É um fato constatado: se o povo não se dava conta de que o regime monárquico exigia subordinação à autoridade dos ministérios, na fase republicana essas exigências passaram à drasticidade. Que perdíamos a autonomia diante da voracidade de grupos políticos nacionais é fato consumado. Imagine-se uma República feita da noite para o dia, uma República que começava. por impor ao Amazonas e demais Estados (nessa conjuntura, as Províncias passaram a nomear-se Estados) um governador não escolhido nem apontado pelo Partido Republicano Amazonense. Contudo, o militar positivista dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro não é um produto da conspiração democrata da Província com o Estado. Não teve nenhuma atuação na preparação do ambiente republicano no Amazonas. Nâo teve de exaltar-se como indivíduos da espécie do dr. Dómingos Teófilo de Carvalho Leal, o dr. Almino Álvares Affonso, próceres que estiveram barbeando a monarquia, que fizeram oposição ao conde d'Eu e hostilizaram, sistematicamente, o governo imperial. Observe-se também que durante o regime reinol e imperial não houve perturbação interna que tivesse por objetivo a sórdida ambição politica. Quem desejar fazer a história dessas perturbações pode apelar para três movimentos: o motim por falta de troco, em Manaus; o levante de 1832, em Manaus; e a sangrenta guerra da Cabanagem, que seria um movimento envolvente partido do Nordeste. Salvo a Cabanagem, que foi uma espécie de "fronda", com as hordas comunistas de lenço vermelho ao pescoço e o simbolo fraterno das duas mãos cruzadas, em cocar, no chapéu, os demais tiveram limitado campo de ação. Entretanto, a República, com sua apologia da liberdade, criou situações vexatórias para o povo de Manaus, situações determinadas pela ambição de poder, com vistas nas arcas do Tesouro público. E quem criava essas situações eram os militares que traziam fórmulas novas de governo.
O dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro não foi um produto primeiro da experiência provincial amazonense. Incorporado ao Exército quando deixou a Escola Politécnica, foi lotado no 3 ° Batalhão de Artilharia-a-Pé sediado em Manaus e onde servira o coronel Floriano Peixoto. É certo não haver tomado parte nas campanhas pró-abolição dos negros, apesar de suas origens mulatas, e nem parece haver sido desde logo um fervoroso adepto da República. Talvez por prudência deixou-se ficar numa situação de expectativa. O professor Agnelo Bittencourt, na curta biografia do Pensador, afirma ver uma foto no Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, em que aparece o dr. Eduardo Ribeiro no grupo que cerca o conde d'Eu. O que nos ocorre confirmar é que o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro não fosse de todo infenso às idéias republicanas, e sua participação nesse grupo só pode justificar um fato: representava alguma patente militar. Entretanto, não consta que levasse muito a rigor os preceitos de Benjamim Constant.
Alcançando Manaus em obediência a ordens superiores, em 1887, em 1889 deve de haver visto e sabido a manifestação que os próceres republicanos fizeram em Manaus contra a pessoa do conde d'Eu, obrigando este a permanecer esquivado, praticamente detido no navio que o conduzia em visita a Tabatinga. Aqui deveria caber uma nota: o povo de Amazonas estava de amuos com o imperador dom Pedro II por sua falta de ética quando passou por Belém rumo aos Estados Unidos. Um imperador que deixava. de visitar a Província que ma.is distante ficava nâo merecia, na consciência do povo, consideração alguma. E, principalmente, enviando um representante estrangeiro. Já se disse bastante desses amuos: o povo de Manaus nunca tolerou dom Pedro I por causa da questão do não-reconhecimento da Província do Amazonas. Nunca lhe dedicou um logradouro, nem o mais escuro e sujo beco. Por isso a falta de habilidade de dom Pedro II serviria de pá de terra na monarquia.
Imagina-se que o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro haja sido um homem de vontade de ferro, capaz de tomar grandes resoluções, um pensador a seu modo, mas de qualquer maneira possuía a cabeça dos matemáticos: dura de roer. Bacharel em Ciências Matemáticas, como se titulava nos atos oficia.is, chegou a ser nomeado professor da Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, mas nunca exerceu a cátedra, apesar de haver tomado posse dela em 1890, no governo do marechal Deodoro. Que justificativa encontramos para a recusa do matemático em exercer as funções? Ou a nomeação foi apenas um prêmio, uma nota honorifíca? Talvez influência de seu amigo capitão do Exército Augusto Ximeno de Villeroy Foi este quem deu a chance para o dr. Eduardo Ribeiro ascender na politica. Isso nos leva. a conjeturar haver o Pensador optado pela politica e a admnistração civil, opção que lhe causaria desgastes morais e, consoante certas opiniões antigas, teria apressado a velha disposiçâo para a fraqueza mental. De qualquer modo, o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro era misantropo e sua personalidade só pode ser comparada ao do colega de armas tenente dr. Fileto Pires Ferreira, um homem dinâmico mas sabidamente reservado. Seja por isso sua vocação para o celibato? Dr. Eduardo Ribeiro não se casou, mas vivia com uma senhora com quem teve um filho muito nomeado na crônica dos jornais da oposição e a quem ele, dr. Eduardo Ribeiro, fazia de herdeiro universal. Essa disposição testamentária levava os irritados opositores à crença de que o governador acumulara riquezas a fim de deixar o filho em situação independente. Desse filho nunca ma.is se soube notícia, mas uma versão da época o localiza primeiro em Minas Gerais, depois no Rio de Janeiro, para onde se mandaram os homens da privança do governador: coronel Afonso de Carvalho, dr. Manuel Uchoa Rodrigues e outros.
Como já foi dito, o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro não foi um produto da experiência provincial, como talvez Floriano Peixoto, o capitão-de-mare-guerra Nuno Alves Pereira de Melo Cardoso, dr. Leovegildo de Sousa Coelho, gente que praticamente conviveu com a população na época em que o Amazonas escapava da suserania do Pará. Republicano como a grande maioria dos cadetes, talvez mais afeiçoado à filosofia comtiana e constantina do que muitos outros de sua idade, foi ele quem inaugurou no Amazonas o conceito de cidadania, conceito que nivelava as classes todas respeitosamente. Qualquer sujeito, por mais pobre e rebaixado socialmente que fosse, era o cidadão. Esse conceito não é somente um requisito da forma "res publica", mas um tuteamento capaz de equilibrar as desvantagens de ser-se carroceiro, calceteiro, boleeiro etc. ou doutor em medicina, engenheiro etc. Logo mais a forma que aparece nos atos oficiais é extirpada da preocupação dos governantes e volta-se ao "sr. fulano" etc. O respeito que o dr. Eduardo Gonçalves R.ibeiro (ou o Estado republicano) guardava pelo cidadão está muito bem representado em sua escolha dos assessores. Quando a gente passa em revista os nomes desses secretários compréende, perfeitamente, por que a máquina administrativa andava regularmente e com precisâo absoluta, precisão militar. Os papéis do governo e do interesse coletivo não dormiam nas gavetas, não se procrastinava nos despachos.
Tudo corria como se o governo tivesse pressa em concluir no menor tempo possível a quantidade de obras atacadas aqui e ali. Essa é uma das boas qualidades da administração ribeirina, exemplo que deveriam ter presente os modernos administradores que deixam os papéis do povo para o dia 31 de fevereiro...
 Não tomou parte nas campanhas pró manumissão dos negros escravos nem a formaçâo da consciência republicana. Contudo, diz o professor historiador dr. Arthur Cézar Ferreira Reis, sua vinda para a Amazônia foi em decorrência de aplicaçâo de pena militar, "dadas as suas demonstrações pela República". Não me parece que a simpatia pela forma republicana (extensiva e intensiva. no Exército da época) fosse suficiente razão para o que, naquele tempo, e qui~á ainda hoje, se considera pena severa o desterro para a Amazônia. Deve de haver sido algo mais discriminante, que não chegou a ser divulgado. Tanto que o apenado deixou-se
comodamente ficar em Belém do Pará a curtir o efeito do castigo e, somente em agosto de 1887, é que se desloca para Manaus. As situações nâo conferem: nâo foi sua vinda para a Amazônia, já no posto de tenente, condicionada a alguma indisciplina, pois que havia sido lotado no 3° Batalhâo de Artilharia-a-Pé sediado em Manaus. Existe, portanto, um certo qüiproquó nessa situação do militar que não se conseguiu ainda deslindar. O certo, porém, é que foi um elemento de ocasião na política amazonense, um elemento que, à primeira vista, parecia destinado a provocar distúrbios entre os partidos majoritários: o Democrático, que tinha por órgâo oficial o jornal O Amazonas, e o partido oposicionista Nacional, este chefiado e organizado pelo velho político Ferreira Pena e o primeiro com a ajuda do próprio dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro. Como se vê, a caldeira começou a ferver de novo no Amazonas e ferveria de maneira assaz tumultuosa. Nela se envolvia Eduardo Ribeiro provocando a acrimônia de uns e o aplauso de muitos. A situação chegou a formar um caos, pedindo a intervenção imediata do governo central. Parece que a República instaurada sem uma visão dos confrontos de interesses partidários ameaçava ruir com tanta indisciplina reinando na administração, com o próprio Deodoro a dançar na corda bamba. O militarismo que se implantou no Brasil teve sempre a repulsa das camadas civis e Rui Barbosa não deixaria de escrever um panfleto contra essa tendência.
O Partido Democrático (republicano), instalado em Manaus a 27 de julho de 1890 e chefiado pelo dr. Domingos Teófilo de Carvalho Leal, tinha sua sede na rua de José Clemente (praça de Sâo Sebastião) e seu dirigente era o mais ferrenho adversário do Império. Ambicioso e atrabiliário, inimistou-se logo com a camada social de Manaus, à altura de 1889, quando fez parte do triunvirato que sucedeu ao presidente provincial dr. Manuel Francisco Machado. O tumulto provocado pelas decisôes oposicionistas do chefe do partido acabou por liquidar as pretensões daquela gente que entrava na República falando alto de democracia e arregaçando as mangas para o pugilato. No entanto, a verdadeira manifestação democrática republicana estava na voz do professor de primeiras letras Bento Aranha, que, em toda parte e cerca de vinte anos antes, já diminuía o Império, atacando-o em todas as frentes, no jornal e na tribuna. Nada conseguiu com a implantação da República, enquanto os oportunistas, os republicanos de última hora (monárquicos ontem), faziam-se nos cargos públicos. Acreditamos que somente três indivíduos daquela plêiade de políticos batalhadores tinham realmente vocaçâo republicana: Bento Aranha, Carvalho Leal e Almino Affonso, porque possuíam voz nos comícios e nas ocasiões oportunas, mas também sabiam enfrentar o militarismo, principalmente quando da gestâo do coronel (depois marechal) Taumaturgo de Azevedo.
Uma vez fincado o pé no estribo, o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro não mais desistiria de governar. Como militar e engenheiro, enfrentou as sedições que o desejavam longe da curul governamental. Teve sorte em encontrar apoio numa atmosfera de desconfiança e de traição, ele próprio considerado proditor pela história dos acontecimentos de 1898. A existência do dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro, como político, deixa oportunidade para sev~. ~as críticas, lugares abertos às reivindicações da verdade. Não se trata da vida do administrador, que essa, apesar de curta, curtíssima, foi brilhante. Pudesse aquele homem de tino e de caráter férreo governar mais oito anos e estaríamos hoje em condições de usufruir de mais prestígio entre os povos civilizados. O que desejamos concluir é que, salvo alguma predisposiçâo para o exagero, Eduardo Ribeiro traçava os planos que executava realmente. Para isso cercou-se de uma equipe de infatigáveis homens de talento, engenheiros, burocratas, que o ajudavam a manter o ritmo dos negócios administrativos. Mas, em contrapartida, estiveram a seu lado igualmente os profissionais da politicagem desenfreada, aqueles que pululavam no Clube Republicano, adventícios muitos deles e outros já celebrizados em falcatruas eleitoreiras, como os irmãos Moreira (Guilherme, Emílio e José), qüe o povo dizia formar o "Partido dos Moreiras". O fato é que o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro não deixou de pisar na veste talar da Justiça nem de tripudiar sobre os direitos do povo. Uma espécie de consciência dupla: agia como homem de espada e como alcaide de obras. O primeiro grande ato público de sua administração
provisória foi a reforma da Constituição do Estado. Ora, atualmente quantos indivíduos não reformaram a nossa pobre Constituição para adaptá-la a seus interesses particulares? Acho que Eduardo Ribeiro está redimido desse ato atrabiliário a que se sucederam muitos outros durante sua curta administração. Mas para que a reforma da Constituição? Que interesse havia em produzir um novo estatuto político? Sem discriminações, a resposta deve de estar no artigo 155 , último, nas disposições transitórias. Esses acréscimos dizem respeito ao patrono político-filosófico do Exército Benjamim Constant - e ao próprio Eduardo Ribeiro, assim redigidos:

Aríigo l55 ° - Para perpetuar em todos os tempos a gratidão profunda do povo Amazonense ao benemérito cidadão Benjamim Constant, fica consignado nesta Constituição um voto de admiração e respeito à memória do eminente patrício, o Fundador da República dos Estados Unidos do Brasil.

E logo em seguida:

Disposições Transitórias Artigo 1 .° - O período governamental ocupado pelo Governador Dr. Eduardo Gonçalves Ribezro e Vice-governador Coronel Guilherme José Moreira (Barão de Juruá) terminará guatro anos depois da promulgação desta Constituição. Artigo 2.° - O mandato dos atuais Representantes terminará a 31 de dezembro de 1894.

Basta para o serviço da crítica os dois artigos supra. Imagine-se o grande Eduardo Ribeiro legislando em causa própria, ou seja, amparando sua continuidade na Constituição por ele reformada. É um golpe de mestre, mas isso não seria novidade no Brasil, nem mesmo nestes últimos cinqüenta anos de Repúblicas Nova e Velha. A malandragem política cerrava. uma porta e abria outra mais larga à evasão dos interesses partidários. Imagine-se Eduardo Ribeiro sem raízes na terra e sem nenhuma experiência do caudal de conflitos pessoais e gerais que a antiga província jorrava no âmbito inexperiente da jovem República, tendo ao lado um vice que procedia justamente daquele caudal. Na verdade, o dr. Eduardo Ribeiro não governou com seu partido, mas também nâo deu muita chance aos veteranos da terra, como Bento Aranha, que morreu quase esquecido, pelo menos esquecido de seus antigos correligionários. Mas não se deslembrou de convidar o erudito coronel Bernardo Ramos, um dos últimos abencerragens do monarquismo. Essa forma de contemporização, um tipo de filosofia útil aos interesses do Estado, eletismo político que agradou, confere a Eduardo Ribeiro o mérito de ser astuto e prudente, no início de sua arrancada. Os adversários do Partido Nacional não o perdoavam, nunca o perdoaram e foram muitos os que tentaram denegrir sua obra, maculando a pena nas infâmias e injúrias assacadas na imprensa diária. Nós outros não duvidamos em reproduzir certas histórias vertentes nas páginas dos jornais da oposiçâo. Algumas delas possuem hálitos de verdade, como a de haver dotado o filho único com capital extraído das aras públicas. O fato de o dr. Eduardo Ribeiro morrer sem posses não exclui a possibilidade de haver deixado ao filho o suficiente para enfrentar a vida futura. Um governante que não possui família constituída legalmente e aparentemente habita sozinho uma mansão ou duas (no caso dele), dispondo portanto de facilidades que um simples vice-governador não usufruía, deveria amealhar réditos sem tamariho. Até aí o sentido de honestidade que lhe dão Arthur Reis e Agnelo Bittencourt, seus principais biógrafos, o último com maiores aportes, sem crítica analítica. Supomos que os jornais oposicionistas não tivessem razão para melindrar a pessoa humana do ilustre homem. Essas estroinices não são produto da ociosa capacidade do povo, não são. Representam o tributo de uma época de expansão econômica e de facilidades políticas. Por isso não é de admirar que o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro possuísse duas moradas, uma na cidade, à rua de José Clemente Pereira, e a outra, a mansão ou retiro, também chamada Vila Pensador, na estrada antiga de Epaminondas, hoje de Torquato Tapajós.
                  
Acontecimento político de extraordinário sucesso foi o reconhecimento, pelo Congresso Amazonense, no dia 9 de julho de 1986, dos candidatos dr. Fileto Pires Ferreira para governador do Estado e do coronel José Cardoso Ramalho Júnior para vice governador. Não gue estes dois nomes sugerissem algo especial no cenário da cultura, mas porque ambos viriam a ser pivô da mais curiosa farsa que a história política do Brasil já registrou nos seus anais: o primeiro como vítima de uma renúncia forjada pelos governos estadual e federal e o segundo como autor ou co-autor do ilícito de que foi mandatário e autor intelectual do probo dr. Eduardo Ribeiro, o homem das apregoadas e nunca esguecidas honestidades, que tem sido reverenciado como padráo de trabalho e de ilibada moral. O homem que, com o estampido de um foguetão lançado às dez horas da manhá, antecipou de duas horas o meio-dia, a fim de consumar a farsa que entregara o poder nas mãos do seu pupilo dr. Fileto Pires Ferreira. Estranha história de estranhos resultados(1):

Geralmente se conta esse episódio de outro modo, mas os resultados foram os mesmos. A verdade, porém, é que o Congresso Amazonense costumava reunir-se às 12 em ponto, hora oficial assinalada por um foguete manipulado pelo Serviço Meteorológico do Estado. Não havia ligaçãó nenhuma entre aquele.serviço e o Congresso Amazonense. Mas no dia 9 de julho de 1986 toda Manaus surpreendeu-se com o estranho acontecimento! Eram apenas 10 horas da manhã e o foguete assinalava meio-dia. Uma das poucas pessoas sobreviventes daquela época em 1940 era o senhor Zeferino Rocha, funcionário competente da Manaus Harbour, mas naquela altura empregado do mesmo serviço meteorológico. Ele e o engenheiro Paiva e Melo gostavam de referir para minha curiosidade de historiador as façanhas dos políticos do Amazonas, pois o engenheiro fora também ele uma das vítimas quando da concessão dos serviços telefônicos para o grego Jaramillo. O curioso é que o mesmo autor e mandatário da farsa seria igualmente o homem que empurraria o camarada de farda escada abaixo pelo simples fato de o dr. Fileto Pires Ferreira haver traído a confiança política qwe nele depositara dr. Eduardo Ribeiro. De posse do poder, dr. Fileto Pires Ferreira passou a aceitar dr. Campos Sales e chegou a fazer declarações comprometedoras à imprensa de Paris (2).Ora, naquele tempo era mais provável saber-se de imediato um acontecimento verificado na
Europa do que no Rio de Janeiro. Em Paris estava o irmão do político dr. Silvério José Nery, o famoso e erudito barão de Santa-Anna Nery, e na França o representante Alexandre d'Atri. Num ápice, as comprometedoras observa~ões do dr. Fileto passaram ao telégrafo de Belém do Pará e não demorou muito alcançarem Manaus. Quando estourou a notícia de que seu pupilo estava ameaçando aceitar a politica de Campos Sales, o recurso era alijar o pupilo do poder, por inconveniente. O Congresso Foguetão (por que passara a ser conhecido depois daquela farsa) aceitou um papel com a assinatura formal do dr. Fileto Pires Ferreira que dizia o seguinte:

RENÚNCIA

Cidadão Presidente e mais Membros do Congresso Amazonense.
Paris, 27 de Jünho de 1898.

Saúdo-vos, apresentando-vos os mais sinceros e cordiais protestos de meu acatamento e respeito para convosco.
Cumprindo o preceito constitucional venho trazer vos hoje a renúncia do cargo que exerço nesse Estado, do qual sois dignos representantes, por não me ser possível por motivos de ordem superior continuar a exercê-lo.
Vós melhor do que ninguém sabeis que aceitei essa delegação do povo amazonense depois de reiterados pedidos de todos os nossos amigos; delegação, repito, que por mim jamais foi ambicionada e que hoje não o é.
Discípulo de Benjamim Constant, inspirado nos seus ensinamentos é convicção minha que a tolerância e a transigência deviam ser sempre as qualidades de um homem público.
Fiz tudo o que as minhas forças comportaram e não me acusa a consciência de me haver afastado da linha que propus-me seguir. Tomando esta resolução sugerida pelos ditames de meus sentimentos, determinada pelo império das circunstâncias deixo bem patente aos meus concidadãos que dos cargos que na política ocupei apenas me prendam a vontade e o desejo de por intermédio deles ser útil ao meu país. Crente de que o digno povo amazonense saberá fazer me justiça, envio-lhe as expressões dos mais ardentes votos que faço pela
prosperidade e engrandecimento que lhe asseguram as suas riquezas e o patriotismo acrisolado dos seus filhos.
Saúde e fraternidade.
Fileto Pires Ferréira.

Com efeito, o homem que redigia um papelucho mal-escrito, depois de aceitar os cambalachos políticos que o elevaram, não iria baixar à terra e confessar-se inibido para as funções. Está patente a atrevida poluição moral da congérie que preparou a farsa. Dr. Fileto Pires Ferreira reagiria a tão insólito gracejo:

Recordo-me de haver deixado nas mãos do senhor Eduardo Ribeiro uma folha em branco com a minha firma, ainda quando eu me encontrava na capital federal, com o escopo de defender a sua primeira eleição. Ele deveria apresentar aquela carta acompanhada de uma reclamação a propósito de antiguidade militar. Mas o documento não foi apresentado, enquanto que a folha com a minha firma ficou sempre em seu poder, conquanto ele me havia prometido várias vezes restituir-ma.

Nâo seria necessário um artifício desse tipo. A assinatura do dr. Fileto Pires Ferreira andava em documentos oficiais. Atribuem os políticos do passado, firmados em devassa, ao cidadão Aristides Emídio Baima a autoria do ilícito, mas fica sempre flutuando a responsabilidade autoral do coronel Ramalho Júnior e do dr. Eduardo Ribeiro. Presentémente, confiou-me o historiador dr. Arthur Cézar Ferreira Reis possuir um documento que lhe foi dado pelo coronel Ramalho Júnior e no qual fica este eximido da grande responsabilidade histórica. Esse tópico não diz respeito às manobras políticas que envolveram os nomes dos três grandes, por isso não nos estendemos mais em considerações a respeito do "caso Fileto Pires", um dos maiores, se não o maior, escândalos da administração na República e do qual participou o governo federal como interessado direto.
Seria lógico argumentar, pelos fatos acima, que a intolerância politica do governo estadual atingisse profundamente o caráter do homem Eduardo Ribeiro? Ou devemos separar o evento politico da armadura moral do homem que realmente se constituiu um padrão de atividade dinâmica em benefício da cidade de Manaus?
Considerando-se certos fatos ligados à administração Eduardo Ribeiro e sua formação ética (o militar nunca tomou decisões extremas), chegase à conclusão de que o absconso homem que nâo aparecia freqüentemente nem mesmo no teatro que construíra à custa de esforço e em tão pouco tempo pecava pelo ensimesmamento, pela talvez muito notada egolatria. As fotos do homem, em trajes civis normalmente e em militar raras vezes, mostramno carrancudo, sobrancelhas carregadas, bigodes de guias empinadas, o biótipo do coronel (da Guarda Nacional) Ramalho Júnior, embora os temperamentos diferissem grandemente. Eduardo Ribeiro, homem culto, reservado, trazia a verônica enfeitada apenas pelo bigode. Calvo e redondo. Creio que a qualquer pessoa não escapam os olhos amortecidos de doente. Sabemos pelas notícias divulgadas pelos jomais de Manaus haver contraído a terrível moléstia que assolava a região, o paludismo ou febre palustre. Essa doença o levaria à Europa. Relata uma boa revista italiana, L' Amazzonia, bem informada a respeito das coisas da Amazônia Ocidental, a presença do político no velho continente, mas quando ocupava, a presidência do Congresso Amazonense, em outubro de 1900:

Eduardo Ribeiro
Completamente ristabilito, col/ Rio Amazonas fece ritorno a Manaos l'illustre nostro amico Dr. Eduardo Ribeiro, Presidente del Congresso dello Stato dellAmazonas. Sua Eccellenza - chè a Pará fu affettuosamente visitado dal Governatore di quello Stato e a Manaos accolto dalle autorità tutte e da numerosa folla - riprenderà subito il suo altissimo ufficio. Le nostre vive felicitazioni.

O dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro viajou com licença do Congresso de Representantes a tratamento da saúde abala.da, mas não se pode acolher uma notícia desse feitio sem uma especulação: o tempo concedido ao presidente do Congresso era muito exíguo para o tratamento de moléstia daquela espécie, para a qual, apesar de todos os remédios nacionais, regionais e europeus, nâo havia ainda solução. É de suspeitar essa brevidade, parecendo mais uma desculpa para desorientar possíveis manobras politicas. Toda vez que ele e dr. Fileto se ausentaram
do governo ficava o terceiro homem, o coronel Ramalho, que também foi à Europa semostrar-se, escandalizar o mundo europeu com suas nababescas orgias. Mas com o dr. Eduardo Ribeiro não acontecia esse desregramento. O homem era de qualquer modo retraído, sóbrio, casmurro, irritável. Fechado como uma ostra, mas dono de uma habilidade infernal para fazer distrair os outros a sua custa ou à custa do erário público, embora essas despesas não fossem incluídas nos balancetes do Tesouro. Arrumava.-se a casa todas as vezes que um eleito ocupava o trono. A primeira coisa a dizer (e parece que o andor não mudou até hoje) era que as finanças do Estado andavam seguras, controladas pela severa distribuição das rendas, e os dinheiros haviam crescido pela boa administração. Isso não impedia que o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro entregasse o governo com um débito assustador, que o pupilo dr. Fileto Pires Ferreira escondia sob a alegação costumeira. É o que ele proclama em sua mensagem de 1898, é o que estimavam todos os outros. Só depois que ascendem ao poder os Nery é que a cantiga muda de tom, com o interesse em solapar o brilhantismo das obras dos antecessores, visto que depois de Eduardo Ribeiro seriam raras as obras de vulto levadas a cabo em Manaus, muito embora a goma elástica ainda sustentasse o prestígio econômico da regiâo até mais ou menos 1909. Ao contrário, o que fez o primeiro Nery da oligarquia foi seguir o exemplo do coronel Ramalho: deitar abaixo as paredes do majestoso Palácio do Governo sob a alegação de que estavam defeituosas e ameaçavam ruir. Aliás, o autor da primeira "encampação" das obras foi o coronel Ramalho, que mandou dinamitar o prédio, deixando-o somente numa meia altura. Nery fez o resto sob a justificativa de mandar erguer um palácio menos suntuoso e mais seguro. A idéia não passou da planta, desse palácio e do Palácio do Congresso.



NOTAS

(1)Mário Ypiranga, teatro Amazonas,VI,p.198, 165-6) .

(2)Idem, v.II, p.390. existem notícias estampadas nos jornais de Manaus sobre a traficância do tenente dr.Fileto Pires Ferreira, registrando-se noutra paróquia a fim de aumentar a idade e atender a exigência da candidatura governamental



Um comentário:

  1. Olá Professor,

    Tu sabes alguma informação sobre Aristides "Bayma" (esse era a grafia utilizada na época)?

    Um abraço

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