terça-feira, 24 de maio de 2016

A trajetória de Eduardo Gonçalves Ribeiro VII - MÁRIO YPIRANGA MONTEIRO


CAPÍTULO 7


CINZAS E DIAMANTES

Taumaturgo, Eduardo Ribeiro, Fileto, José Ramalho, fizeram de Manaus a mais confortável e moderna cidade brasileira daquela época. Abandonemos, duma vez por todas, essoutra lenda de que Manaus é obra exclusiva da administração
do "Pensador'; pois que, se durante os seis anos de seu governo pôde efetuar a maior parte da construção da capital, nem por isso outros governadores, igualmente valorosos e capazes, deixaram de trazer extraordinária contribuição ao admirável esforço comum para o progresso da cidade-chave da barelândia.
Júlio Nery, Um governador do Amazonas.

Tornou-se lugar-comum admitir-se tudo quanto Manaus possui de bonito e de moderno ao governador dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro. Esse processo de julgamento distorce a imagem de administrações provinciais e obscurece igualmente a paisagem progressista de Manaus no tempo da monarquia. Não se pode deixar de levar em conta que a Província está na órbita da História quando se deseja formular uma opinião decisória. Precisamente é durante o período pós-colonial que têm início as tentativas bem-sucedidas de melhorar a fisionomia da chamada "urbes aquática". Essas tentativas se tornam realmente melhores quando ao Amazonas é dada a condição de governar-se, isto é, passa à condição de Província autônoma, pois, enquanto esteve sob a tuteia do Pará, nada foi realizado em proveito, tirante o governo dinâmico do dr. Manuel da Gama Lobo d Almada, um homem de visão que por isso mesmo foi impedido de trabalhar. É suficiente uma leitura rápida pelos Anais da Assembléia Legislativa, do Amazonas, no período de 1852 a 1889, para ter-se uma ideia geral do entusiasmo com que nacionais e estrangeiros pretendiam modificar a facies da cidade, a cultura, a administração emperrada e os serviços que viriam beneficiar a população e o comércio. Não é vocação da República nem de governos ditos democratas-republicanos, apenas, e refraseamos: apenas, as iniciativas tomadas em ordem a dotar a cidade de serviços e instalações adequadas, que correspondessem às exigências do comodismo e às necessidades implantadas já no Velho Mundo. O dr. Júlio Nery, filho do sr. Silvério José Nery, mostrou-se bem aparelhado a informar aquilo que sempre dissemos sem tentar menosprezar a obra de Eduardo Ribeiro mas com vistas a um primado de justiça histórica: muitas realidades que alcançamos e muitas comodidades que usufruímos foram pensadas e admitidas no regime monárquico, discutidas e aceitas pelos nossos deputados provinciais e pelos presidentes da Província. Eles também cuidavam dos problemas angustiantes da navegação a vapor, do transporte urbano, do fornecimento de água potável direta à população, dos serviços de esgotos, do aterro das ruas, da abertura de estradas carroçáveis, da iluminação pelo sistema elétrico, da oferta de divertimentos sadios ao povo, da educação e instrução primária, secundária e técnica, dos orfanatos e casas de saúde, do bem-estar da população, e essa política aberta não excluía o jornal, a biblioteca, o seminário episcopal, o aterro inicial de igarapés, a construção de pontes de madeira, a abertura de ruas e praças, a ajuda de custo a todas as propostas consideradas necessárias ao bem-estar da população, o incentivo a estudantes pobres, a construção de igrejas na capital e no interior, de escolas primárias diurnas e noturnas, incentivo à agricultura, alinhamento das casas, proibição de abusos contra a higiene pública, coleta do lixo particular e público etc. Poder-se-ia argumentar não haver misoneísmo da parte dos responsáveis pelo que pareceria novidade. Em uma época em que a carência de profilaxia e de higiene estumava. a proliferação de doenças fatais, os chamados médicos de partido atendiam a população civil e os militares até que fossem instalados os hospitais para o que a Província concorria com grande numerário.
Repetimos, muita ideia que pareceria nova e recente ao surgir da República já era explorada com rendimento e sucesso nos idos da Província. Seria erro histórico apadrinhar uma primazia afeta ao dinamismo do governador dr. Eduardo Ribeiro. O curioso é que até se exorbita, atribuindo ao malogrado homem certas conquistas utilitárias que tiveram o apoio antes da República, de mesmo que a ele se atribuem inovações justamente partidas de sucessores. Até esse ponto o dr. Júlio Nery está correto no julgamento. Entretanto que não seria verdade, por exemplo, chamar para aqui a pessoa do seu genitor na qualidade de construtor de Manaus. É certo que ao coronel José Cardoso Ramalho e aos governantes Taumaturgo de Azevedo e Fileto Pires Ferreira, àquele mais que a estes, que governaram pouco tempo, o Amazonas pode dever alguma coisa do que resta do seu patrimônio histórico. Mas ao sr. Silvério Nery não. Pelo contrário, como deixamos dito, suas idéias não passaram do papelório, embora fossem na verdade grandes projetos, admiráveis projetos, faraônicos projetos... Já a seu irmão Constantino Nery se pode com justiça considerar um benfeitor da cidade, haja vista os imponentes prédios da Biblioteca Pública e da Penitenciária do Estado.
A situação era, ou é, esta: a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. O jornal amazonense A Federação, de 30 de setembro de 1898, publicou uma lista das obras realizadas pelo dr. Eduardo Ribeiro, lista que foi reproduzida na revista italiana L' Amazzonia, de 15 de outubro do mesmo ano, portanto com uma diferença de àpenas quinze dias! Desse rol constam trinta trabalhos iniciados ou reformulados, assim enumerados:

 - Nivelamento e embelezamento de dois terrenos na cidade de Manaus
- Abertura e nivelamento dos bairros novos da Cachoeira Grande e Cachoeirinha(30)
- Pavimentação com paralelepípedo de granito das praças da República e da Constituição
- Pavimentação a paralelepípedo das ruas da Instalaçâo, Municipal e da plataforma da Catedral
- Pavimentação a pedra tosca de várias ruas adjacentes
- Construção da avenida de Eduardo Ribeiro
- Construção do jardim da praça da República
- Construção do jardim e gradeaménto da Catedral
- Levantamento da planta cadastral da    cidade(3l)
- Edifício do Diário Oficial e respectivo jornal(32)
- Edifício do Instituto Benjamim Constant para órfâs(33)
- Seis escolas públicas primárias em Manacapuru, Humaitá e Lábrea
- Reorganização radical do ensino no Ginásio e escola Normal
- Ereção não terminada do Instituto dos Educandos
- Reorganização da Biblioteca Pública
-Criação de um hospício para alienados - Hospício Eduardo Ribeiro - sob direção das irmãs de
   Santa Ana(34)
- Ereção não concluída do Palácio do Governo
- Novo edifício do Quartel do Regimento Militar do Estado(35)
- Teatro Amazonas
- Reservatório de água do Mocó


- Contrato de navegação para o Mediterrâneo, com escalas
- Distribuição das terras baldias do Estado para cultivo
- Abertura da estrada Manaus - Campos Gerais do Rio Branco
- Pontes de ferro da Cachoeirinha e Cachoeira Grande
- Pontes romanas da rua Municipal
- Ponte de madeira no bairro da Cachoeirinha
- Fonte monumental da praça 15 de Novembro(36)
- Iluminação elétrica a arco voltaico, a primeira implantada no Brasil
- Telégrafo subfluvial
- Projeto do Código de Processo Criminal


Lendo-se o que acima ficou escrito, tem-se a impressão imediata de haver sido escamoteada grande parte do rol de coisas doadas à cidade pelo ilustre administrador. E que não são coisas despiciendas. Faltam ali precisamente os elementos mais essenciais a um governo: a Instrução e a Saúde. Disso cuidou religiosamente Eduardo Ribeiro, bem como do Transporte, da Colonização, da equânime distribuição de terras aos menos afortunados, muitas vezes por preço inferior ao tabelado ou até de graça; a ver as terras marginais das estradas da colônia Maracaju e da estrada carroçável para o Rio Branco, munificência já apontada no rol acima, mas de maneira insuficiente. Pois na verdade o grande mérito da colonização do Amazonas no governo Eduardo Ribeiro foi, posto ter sido ela preocupação anterior, a partir de 1877-1888 - diga-se justo -, a criação da Colônia Santa Maria do Janauacá, onde ele conseguiu plantar engenhos de moer cana e fabricação de açúcar mascavo e aguardente. Outros benefícios maiores e menores serão aqui e ali apontados, em ordem a um possível completo balanço do que ele encontrou por fazer e terminou, do que fez (suas idéias próprias) e deixou por fazer, e que outros, sob a máscara da negligência ou da maldade, corromperam, destruíram, abandonaram ao lixo, à rapina. Refiro-me muito especialmente ao majestoso Palácio do Governo, no alto da avenida de Eduardo Ribeiro, sobre cujos sólidos alicerces foi construído 0 Instituto de Educação do Amazonas (Escola Normal), uma obra destinada à contemplação e serventia dos pósteros, sem dúvida alguma um dos maiores edifícios do Brasil. Efetivamente, a dívida pública deixada por Eduardo Ribeiro foi insignificante, comparada com os desvarios orçamentários de seus sucessores, pois houve um saldo no Tesouro, reduzindo-se a dívida, que era 1.580:550$006 em 1893, para 321:116$575 no orçamento 1896-1897(37). Na verdade, Eduardo Ribeiro deixou de satisfazer a certos compromissos assumidos em sua gestão, por exemplo, alugueres de casas para repartições, mas isso consta lisamente dos papéis oficiais exibidos no Auto de Avaliação de seus bens. O desgaste do Tesouro começa no governo Ramalho Júnior e alcança o cataclismático na gestão do coronel Constantino Nery. O governo seguinte, do dr. Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt, vai encontrar o Estado em franca bancarrota, com uma dívida flutuante de 27.878:030$167. Esse bem-intencionado governador, que vinha das hostes do Partido Nacional, nada pôde fazer em benefício da cidade, pois primeiramente cumpria enfrentar a enorme lacuna deixada no erário público. E, para cúmulo, os eternos inimigos do regime, os arruaceiros que vinham de décadas atrás, promoveram a mais sangrenta rebelião que a cidade de Manaus já suportou, com centenas de vítimas inocentes, destruição da fazenda particular causada pelo bombardeio de Manaus no dia 8 de outubro de 1910.
A atuaçâo politica de Eduardo Ribeiro pode não haver tido beneplácito dos que o cercavam, daí as traições costumeiras, mas a orientação administrativa. foi modelar. Nâo se poderia exigir de um quatriênio e de mais alguns meses maior rentabilidade em termos de expansão construtiva. Isso é que sabidamente incomodava a muitos. Ele possuía a febre da criação, seguia contaminado do vírus da capacidade construtiva. Mais que nenhum outro chefe de Estado, seu tempo de governo foi dedicado ao trabalho de dotar a cidade de melhoramentos e de comodidades. Já fizemos valer essa notória capacidade de trabalho, essa energia contaminadora, que o levava. a estabelecer linha de navegação para o Maranhão, a mandar vir colonos e operários maranhenses; pois as obras novas exigiam mão-de-obra especializada, . adjutórios extras, tantas as disponibilidades chamarizes do braço trabalhador, tantas as escavações, as paredes, os tetos, as valas, os aterros, as pontes, os desmontes, aqui, acolá. Em seu governo, a migração foi a mais bem-dirigida, a mais bem-condicionada às circunstâncias, sem indisciplina, eleva.da ao ponto da dignidade transumântica elegida.


Não foi aquele êxodo motiva.do pela geografia das calamidades que atirou na Amazônia uma chusma de cegos, aleijados, famintos, retirados apressadamente das prisões e mandados povoar uma terra que se encarregou da seleção natural, eliminando os fracos e enriquecendo os fortes, porque houve igualmente centenas de privilegiados, de honestos trabalhadores. Para acolher toda aquela mesnada o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro estabeleceu três colônias distantes de Manaus: uma em Paricatuba, à margem direita do rio Negro, outra no Umirizal e a terceira ao longo da estrada então conhecida por de Epaminondas. A princípio, aquela gente vinha para a lavoura. Seria uma época de prosperidade econômica, à outra luz, não fosse a imperdoável mania dos administradores de modificar a seu talante a politica encaminhada pelo antecessor(38). A colônia de João Alfredo, que veio a ser a de Campos Sales, possuía todas as condições para manter a população de Manaus sem necessidade de importar enlatados, de recorrer às fontes de produção escassa do Careiro, dos Autazes, da colônia de Santa Maria do Janauacá, fundada por Eduardo Ribeiro (Diário Oficial, 17 de janeiro de 1896) e logo mais homologada a Lei n° 148, de 31 de maio do mesmo ano, que contrata linha de navegação para aquela localidade. Não seria apenas esta a preocupação do administrador para com os colonos. Antes já fora publicada a lei subvencionadora da linha de navegação a vapor para os lagos Autazes, onde frutificava uma excelente colônia (hoje é município) dedicada ao pastoreio e à agricultura. É ainda a região do leite e dos bons queijos e manteiga. Mas na colônia do lago Janauacá ele providenciou o estabelecimento de engenhos de moer cana, engenhos que viveram até o advento da revolução de outubro de 1930 (e até mais tarde), quando o caudilho Getúlio Vargas mandou acabar com os engenhos produtores de álcool, cachaça e açúcar mascavo, a fim de proteger-se o Nordeste e São Paulo! Política nociva de boicote da economia de um Estado pobre.
O que é bom ressaltar nas idéias de expansão econômica lateral ao produto-rei (borracha) eram as soluções administrativas. Por exemplo, a Lei n° 120, de 1° de maio de 1895, autoriza o Poder Executivo a introduzir no Estado famílias de imigrantes naturais das Antilhas, ilhas Baleares, Canárias, Açores, Espariha e Japão, dando-se preferência "àqueles que forem chamados por parentes já estabelecidos no Estado". E outras sábias providências. Para essas famílias constituídas havia passagem gratuita e locação na Hospedaria de Imigrantes, um vasto prédio situado no aprazível recanto de Paricatuba, perto da capital, prédio que mais tarde seria convertido em lazareto e penitenciária. Imagine-se a razão pela qual utilizo a referência às obras de Eduardo Ribeiro pelo binômio "Terra-Homem" e não pela comum e cediça tarefa de reconstrução da cidade. O que acredito seja mais importante na obra do administrador consciente foi a inclinação para o elemento humano desamparado, uma vocação protecionista que declina muito bem sua negritude, pois, além dos branquióides europeus e insulares, não esqueceu as gentes de cor das Antilhas, como não esqúeceria as do Maranhão. Os barbadianos, cubanos, haitianos, tanto quanto açorianos e ilhéus do Mediterrâneo europeu e árabe não foram em pequeno número solicitados. A colonizaçâo dirigida com prudência reservava aos casados com filhos menores uma parcela de consideração, pois além dos destinados à lavoura, que recebiam seu chão de graça, permitia-se que os operários de qualquer ofício ficassem por decisão própria onde melhor lhes conviesse o trabalho remunerado.Antes dessa disposição legal,a.s migrações desordenadas,sacudidas pelo interesse particular nos rios produtores de goma elástica,não se apoiavam em regulamentação proficiente. A abertura do mundo amazônico para esse tipo de transumância encontrava no administrador um compromisso de honra, e pode ler-se nas coleções de leis outras providências para o estabelecimento de linhas de navegação a vapor para Mal·és, Purus, Rio Negro, e para o estrangeiro e portos nacionais. Não se cuide numa elementar e exclusiva inclinação para o majestoso, o monumental fixado em termos de arquitetura apenas. Havia igualmente o monumental em obras destinadas a fixár o homem na terra, a dar-lhe trabalho condigno, a fazer a terra explodir em fartura de cereais e tubérculos, pomares e quintais. Uma contrapartida à fácil tradição do extrativismo, que a alguns parecia a galinha dos ovos de ouro mas a outros mais prudentes não convencia, chegava até a causar medo pânico. Seriam necessárias muitas páginas para transcrevermos os documentos referentes a essa atividade, até os regulamentos das leis de terras que os administradores modernos nem conhecem nem fazem questão de conhecer, embora muitos se intitulem arrogantemente "amigos do trabalhador rural", "intérpretes da necessidade pública" e outros arrancos demagógicos. Em Eduardo Gonçalves Ribeiro nâo havia promessas, havia o sentido lúcido e atual da implantação dos serviços utilitários. Até suas mensagens são esquisitamente breves e pouco volumosas em comparação com as mensagens campanudas dos sucessores até nossos dias. Este é, a par da documentação escrita, o pano de amostra da fotografia nítida, grauda, convincente.

NOTAS

(30)O serviço, uma urbanização
técnica invejável, foi executado pelo engenheiro joão
Miguel Ribas.

(31)
Essa planta não seria concluída. O Decreto n° 447, de 22 de setembro de
1900, de autoria do sr. Silvério Nery, declarou nulo o contrato
sob a alegação de que era oneroso para o Estado.

(32)Ver Mário Ypiranga
Monteiro, Notas sobre a Imprensa Oficial.


(33)O prédio, consoante
ilustração, seria. colonial e de propriedade do
barão de São Leonardo.


(34)Foi instalado na chácara adquirida ao dr. Miranda Leão, na rua de Ramos Ferreira, em frente ao antigo forno crematório ·

(35)O edifício do Quartel foi ampliado para o lado direito, pois havia sido o palacete do argentário Garcia.

(36)Por praça 15 de Novembro entende-se o antigo largo da Imperatriz. Após a
proclamação da República, o exagero patriótico tratou de eliminar tudo quanto rescendia a monárquica, a fim de que governos e autoridades não ficassem comprometidos.

(37)Oficialmente diz-se: 141:875$637 réis, débito público de
que ele não fez mistério, pois no inventário, entre seus papéis, aparecem lembretes
referentes a dívidas a esse e àquele, que, deixou de satisfazer em tempo hábil mas
não esqueceria.

(38)
Lei n° 51 de 23 de dezembro
de 1893.


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