CAPÍTULO 7
CINZAS E DIAMANTES
Taumaturgo, Eduardo Ribeiro,
Fileto, José Ramalho, fizeram de Manaus a mais confortável e moderna cidade
brasileira daquela época. Abandonemos, duma vez por todas, essoutra lenda de
que Manaus é obra exclusiva da administração
do "Pensador'; pois
que, se durante os seis anos de seu governo pôde efetuar a maior parte da
construção da capital, nem por isso outros governadores, igualmente valorosos e
capazes, deixaram de trazer extraordinária contribuição ao admirável esforço
comum para o progresso da cidade-chave da barelândia.
Júlio Nery, Um governador do Amazonas.
Tornou-se lugar-comum admitir-se tudo quanto Manaus possui de bonito e
de moderno ao governador dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro. Esse processo de
julgamento distorce a imagem de administrações provinciais e obscurece
igualmente a paisagem progressista de Manaus no tempo da monarquia. Não se pode
deixar de levar em conta que a Província está na órbita da História quando se
deseja formular uma opinião decisória. Precisamente é durante o período
pós-colonial que têm início as tentativas bem-sucedidas de melhorar a
fisionomia da chamada "urbes aquática". Essas tentativas se tornam
realmente melhores quando ao Amazonas é dada a condição de governar-se, isto é,
passa à condição de Província autônoma, pois, enquanto esteve sob a tuteia do
Pará, nada foi realizado em proveito, tirante o governo dinâmico do dr. Manuel
da Gama Lobo d Almada, um homem de visão que por isso mesmo foi impedido de
trabalhar. É suficiente uma leitura rápida pelos Anais da Assembléia
Legislativa, do Amazonas, no período de 1852 a 1889, para ter-se uma ideia
geral do entusiasmo com que nacionais e estrangeiros pretendiam modificar a facies da cidade, a cultura, a
administração emperrada e os serviços que viriam beneficiar a população e o
comércio. Não é vocação da República nem de governos ditos
democratas-republicanos, apenas, e refraseamos: apenas, as iniciativas tomadas
em ordem a dotar a cidade de serviços e instalações adequadas, que
correspondessem às exigências do comodismo e às necessidades implantadas já no
Velho Mundo. O dr. Júlio Nery, filho do sr. Silvério José Nery, mostrou-se bem
aparelhado a informar aquilo que sempre dissemos sem tentar menosprezar a obra
de Eduardo Ribeiro mas com vistas a um primado de justiça histórica: muitas
realidades que alcançamos e muitas comodidades que usufruímos foram pensadas e
admitidas no regime monárquico, discutidas e aceitas pelos nossos deputados
provinciais e pelos presidentes da Província. Eles também cuidavam dos
problemas angustiantes da navegação a vapor, do transporte urbano, do
fornecimento de água potável direta à população, dos serviços de esgotos, do
aterro das ruas, da abertura de estradas carroçáveis, da iluminação pelo
sistema elétrico, da oferta de divertimentos sadios ao povo, da educação e
instrução primária, secundária e técnica, dos orfanatos e casas de saúde, do
bem-estar da população, e essa política aberta não excluía o jornal, a
biblioteca, o seminário episcopal, o aterro inicial de igarapés, a construção
de pontes de madeira, a abertura de ruas e praças, a ajuda de custo a todas as
propostas consideradas necessárias ao bem-estar da população, o incentivo a
estudantes pobres, a construção de igrejas na capital e no interior, de escolas
primárias diurnas e noturnas, incentivo à agricultura, alinhamento das casas,
proibição de abusos contra a higiene pública, coleta do lixo particular e
público etc. Poder-se-ia argumentar não haver misoneísmo da parte dos
responsáveis pelo que pareceria novidade. Em uma época em que a carência de
profilaxia e de higiene estumava. a proliferação de doenças fatais, os chamados
médicos de partido atendiam a população civil e os militares até que fossem
instalados os hospitais para o que a Província concorria com grande numerário.
Repetimos, muita ideia que pareceria nova e recente ao surgir da
República já era explorada com rendimento e sucesso nos idos da Província.
Seria erro histórico apadrinhar uma primazia afeta ao dinamismo do governador
dr. Eduardo Ribeiro. O curioso é que até se exorbita, atribuindo ao malogrado
homem certas conquistas utilitárias que tiveram o apoio antes da República, de
mesmo que a ele se atribuem inovações justamente partidas de sucessores. Até
esse ponto o dr. Júlio Nery está correto no julgamento. Entretanto que não
seria verdade, por exemplo, chamar para aqui a pessoa do seu genitor na
qualidade de construtor de Manaus. É certo que ao coronel José Cardoso Ramalho
e aos governantes Taumaturgo de Azevedo e Fileto Pires Ferreira, àquele mais
que a estes, que governaram pouco tempo, o Amazonas pode dever alguma coisa do
que resta do seu patrimônio histórico. Mas ao sr. Silvério Nery não. Pelo
contrário, como deixamos dito, suas idéias não passaram do papelório, embora
fossem na verdade grandes projetos, admiráveis projetos, faraônicos projetos...
Já a seu irmão Constantino Nery se pode com justiça considerar um benfeitor da
cidade, haja vista os imponentes prédios da Biblioteca Pública e da
Penitenciária do Estado.
A situação era, ou é, esta: a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus. O jornal amazonense A Federação,
de 30 de setembro de 1898, publicou uma lista das obras realizadas pelo dr.
Eduardo Ribeiro, lista que foi reproduzida na revista italiana L' Amazzonia, de 15 de outubro do mesmo
ano, portanto com uma diferença de àpenas quinze dias! Desse rol constam trinta
trabalhos iniciados ou reformulados, assim enumerados:
- Nivelamento e embelezamento de dois terrenos na cidade de Manaus
- Abertura e nivelamento dos bairros novos da Cachoeira Grande e
Cachoeirinha(30)
- Pavimentação com paralelepípedo de granito das praças da República e
da Constituição
- Pavimentação a paralelepípedo das ruas da Instalaçâo, Municipal e da
plataforma da Catedral
- Pavimentação a pedra tosca de várias ruas adjacentes
- Construção da avenida de Eduardo Ribeiro
- Construção do jardim da praça da República
- Construção do jardim e gradeaménto da Catedral
- Levantamento da planta cadastral da
cidade(3l)
- Edifício do Diário Oficial e respectivo jornal(32)
- Edifício do Instituto Benjamim Constant para órfâs(33)
- Seis escolas públicas primárias em Manacapuru, Humaitá e Lábrea
- Reorganização radical do ensino no Ginásio e escola Normal
- Ereção não terminada do Instituto dos Educandos
- Reorganização da Biblioteca Pública
-Criação de um hospício para alienados - Hospício Eduardo Ribeiro - sob
direção das irmãs de
Santa Ana(34)
- Ereção não concluída do Palácio do Governo
- Novo edifício do Quartel do Regimento Militar do Estado(35)
- Teatro Amazonas
- Reservatório de água do Mocó
- Contrato de navegação para o Mediterrâneo, com escalas
- Distribuição das terras baldias do Estado para cultivo
- Abertura da estrada Manaus - Campos Gerais do Rio Branco
- Pontes de ferro da Cachoeirinha e Cachoeira Grande
- Pontes romanas da rua Municipal
- Ponte de madeira no bairro da Cachoeirinha
- Fonte monumental da praça 15 de Novembro(36)
- Iluminação elétrica a arco voltaico, a primeira implantada no Brasil
- Telégrafo subfluvial
- Projeto do Código de Processo Criminal
Lendo-se o que acima ficou escrito, tem-se a impressão imediata de haver
sido escamoteada grande parte do rol de coisas doadas à cidade pelo ilustre
administrador. E que não são coisas despiciendas. Faltam ali precisamente os
elementos mais essenciais a um governo: a Instrução e a Saúde. Disso cuidou religiosamente
Eduardo Ribeiro, bem como do Transporte, da Colonização, da equânime
distribuição de terras aos menos afortunados, muitas vezes por preço inferior
ao tabelado ou até de graça; a ver as terras marginais das estradas da colônia
Maracaju e da estrada carroçável para o Rio Branco, munificência já apontada no
rol acima, mas de maneira insuficiente. Pois na verdade o grande mérito da colonização do Amazonas
no governo Eduardo Ribeiro foi, posto ter sido ela preocupação anterior, a
partir de 1877-1888 - diga-se justo -, a criação da Colônia Santa Maria do
Janauacá, onde ele conseguiu plantar engenhos de moer cana e fabricação de
açúcar mascavo e aguardente. Outros benefícios maiores e menores serão aqui e
ali apontados, em ordem a um possível completo balanço do que ele encontrou por
fazer e terminou, do que fez (suas idéias próprias) e deixou por fazer, e que
outros, sob a máscara da negligência ou da maldade, corromperam, destruíram,
abandonaram ao lixo, à rapina. Refiro-me muito especialmente ao majestoso
Palácio do Governo, no alto da avenida de Eduardo Ribeiro, sobre cujos sólidos
alicerces foi construído 0 Instituto de Educação do Amazonas (Escola Normal),
uma obra destinada à contemplação e serventia dos pósteros, sem dúvida alguma
um dos maiores edifícios do Brasil. Efetivamente, a dívida pública deixada por
Eduardo Ribeiro foi insignificante, comparada com os desvarios orçamentários de
seus sucessores, pois houve um saldo no Tesouro, reduzindo-se a dívida, que era
1.580:550$006 em 1893, para 321:116$575 no orçamento 1896-1897(37). Na verdade, Eduardo Ribeiro deixou de
satisfazer a certos compromissos assumidos em sua gestão, por exemplo,
alugueres de casas para repartições, mas isso consta lisamente dos papéis
oficiais exibidos no Auto de Avaliação de seus bens. O desgaste do Tesouro
começa no governo Ramalho Júnior e alcança o cataclismático na gestão do coronel
Constantino Nery. O governo seguinte, do dr. Antônio Clemente Ribeiro
Bittencourt, vai encontrar o Estado em franca bancarrota, com uma dívida flutuante
de 27.878:030$167. Esse bem-intencionado governador, que vinha das hostes do
Partido Nacional, nada pôde fazer em benefício da cidade, pois primeiramente
cumpria enfrentar a enorme lacuna deixada no erário público. E, para cúmulo, os
eternos inimigos do regime, os arruaceiros que vinham de décadas atrás,
promoveram a mais sangrenta rebelião que a cidade de Manaus já suportou, com
centenas de vítimas inocentes, destruição da fazenda particular causada pelo
bombardeio de Manaus no dia 8 de outubro de 1910.
A atuaçâo politica de Eduardo Ribeiro pode não haver tido beneplácito
dos que o cercavam, daí as traições costumeiras, mas a orientação
administrativa. foi modelar. Nâo se poderia exigir de um quatriênio e de mais
alguns meses maior rentabilidade em termos de expansão construtiva. Isso é que
sabidamente incomodava a muitos. Ele possuía a febre da criação, seguia
contaminado do vírus da capacidade construtiva. Mais que nenhum outro chefe de
Estado, seu tempo de governo foi dedicado ao trabalho de dotar a cidade de
melhoramentos e de comodidades. Já fizemos valer essa notória capacidade de
trabalho, essa energia contaminadora, que o levava. a estabelecer linha de navegação para o
Maranhão, a mandar vir colonos e operários maranhenses; pois as obras novas
exigiam mão-de-obra especializada, . adjutórios extras, tantas as
disponibilidades chamarizes do braço trabalhador, tantas as escavações, as
paredes, os tetos, as valas, os aterros, as pontes, os desmontes, aqui, acolá.
Em seu governo, a migração foi a mais bem-dirigida, a mais bem-condicionada às
circunstâncias, sem indisciplina, eleva.da ao ponto da dignidade transumântica
elegida.
Não foi aquele êxodo motiva.do pela geografia das calamidades que atirou
na Amazônia uma chusma de cegos, aleijados, famintos, retirados apressadamente
das prisões e mandados povoar uma terra que se encarregou da seleção natural,
eliminando os fracos e enriquecendo os fortes, porque houve igualmente centenas
de privilegiados, de honestos trabalhadores. Para acolher toda aquela mesnada o
dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro estabeleceu três colônias distantes de Manaus:
uma em Paricatuba, à margem direita do rio Negro, outra no Umirizal e a
terceira ao longo da estrada então conhecida por de Epaminondas. A princípio,
aquela gente vinha para a lavoura. Seria uma época de prosperidade econômica, à
outra luz, não fosse a imperdoável mania dos administradores de modificar a seu
talante a politica encaminhada pelo antecessor(38). A colônia de João Alfredo,
que veio a ser a de Campos Sales, possuía todas as condições para manter a
população de Manaus sem necessidade de importar enlatados, de recorrer às
fontes de produção escassa do Careiro, dos Autazes, da colônia de Santa Maria
do Janauacá, fundada por Eduardo Ribeiro (Diário Oficial, 17 de janeiro de 1896) e logo mais
homologada a Lei n° 148, de 31 de maio do mesmo ano, que contrata linha de
navegação para aquela localidade. Não seria apenas esta a preocupação do
administrador para com os colonos. Antes já fora publicada a lei subvencionadora
da linha de navegação a vapor para os lagos Autazes, onde frutificava uma
excelente colônia (hoje é município) dedicada ao pastoreio e à agricultura. É
ainda a região do leite e dos bons queijos e manteiga. Mas na colônia do lago
Janauacá ele providenciou o estabelecimento de engenhos de moer cana, engenhos
que viveram até o advento da revolução de outubro de 1930 (e até mais tarde),
quando o caudilho Getúlio Vargas mandou acabar com os engenhos produtores de
álcool, cachaça e açúcar mascavo, a fim de proteger-se o Nordeste e São Paulo!
Política nociva de boicote da economia de um Estado pobre.
O que é bom ressaltar nas idéias de expansão econômica lateral ao
produto-rei (borracha) eram as soluções administrativas. Por exemplo, a Lei n°
120, de 1° de maio de 1895, autoriza o Poder Executivo a introduzir no Estado
famílias de imigrantes naturais das Antilhas, ilhas Baleares, Canárias, Açores,
Espariha e Japão, dando-se preferência "àqueles que forem chamados por
parentes já estabelecidos no Estado". E outras sábias providências. Para
essas famílias constituídas havia passagem gratuita e locação na Hospedaria de
Imigrantes, um vasto prédio situado no aprazível recanto de Paricatuba, perto
da capital, prédio que mais tarde seria convertido em lazareto e penitenciária.
Imagine-se a razão pela qual utilizo a referência às obras de Eduardo Ribeiro
pelo binômio "Terra-Homem" e não pela comum e cediça tarefa de
reconstrução da cidade. O que acredito seja mais importante na obra do
administrador consciente foi a inclinação para o elemento humano desamparado,
uma vocação protecionista que declina muito bem sua negritude, pois, além dos
branquióides europeus e insulares, não esqueceu as gentes de cor das Antilhas,
como não esqúeceria as do Maranhão. Os barbadianos, cubanos, haitianos, tanto
quanto açorianos e ilhéus do Mediterrâneo europeu e árabe não foram em pequeno
número solicitados. A colonizaçâo dirigida com prudência reservava aos casados
com filhos menores uma parcela de consideração, pois além dos destinados à lavoura,
que recebiam seu chão de graça, permitia-se que os operários de qualquer ofício
ficassem por decisão própria onde melhor lhes conviesse o trabalho
remunerado.Antes dessa disposição legal,a.s migrações desordenadas,sacudidas
pelo interesse particular nos rios produtores de goma elástica,não se apoiavam
em regulamentação proficiente. A abertura do mundo amazônico para esse tipo de
transumância encontrava no administrador um compromisso de honra, e pode ler-se
nas coleções de leis outras providências para o estabelecimento de linhas de
navegação a vapor para Mal·és, Purus, Rio Negro, e para o estrangeiro e portos
nacionais. Não se cuide numa elementar e exclusiva inclinação para o majestoso,
o monumental fixado em termos de arquitetura apenas. Havia igualmente o
monumental em obras destinadas a fixár o homem na terra, a dar-lhe trabalho
condigno, a fazer a terra explodir em fartura de cereais e tubérculos, pomares
e quintais. Uma contrapartida à fácil tradição do extrativismo, que a alguns
parecia a galinha dos ovos de ouro mas a outros mais prudentes não convencia,
chegava até a causar medo pânico. Seriam necessárias muitas páginas para
transcrevermos os documentos referentes a essa atividade, até os regulamentos
das leis de terras que os administradores modernos nem conhecem nem fazem
questão de conhecer, embora muitos se intitulem arrogantemente "amigos do
trabalhador rural", "intérpretes da necessidade pública" e
outros arrancos demagógicos. Em Eduardo Gonçalves Ribeiro nâo havia promessas,
havia o sentido lúcido e atual da implantação dos serviços utilitários. Até
suas mensagens são esquisitamente breves e pouco volumosas em comparação com as
mensagens campanudas dos sucessores até nossos dias. Este é, a par da
documentação escrita, o pano de amostra da fotografia nítida, grauda,
convincente.
NOTAS
(30)O serviço, uma urbanização
técnica invejável, foi executado pelo engenheiro joão
Miguel Ribas.
(31)
Essa planta não seria concluída. O Decreto n° 447, de 22 de setembro de
1900, de autoria do sr. Silvério Nery, declarou nulo o contrato
sob a alegação de que era oneroso para o Estado.
(32)Ver Mário Ypiranga
Monteiro, Notas sobre a Imprensa Oficial.
(33)O prédio, consoante
ilustração, seria. colonial e de propriedade do
barão de São Leonardo.
(34)Foi instalado na chácara adquirida ao dr. Miranda Leão, na rua de
Ramos Ferreira, em frente ao antigo forno crematório ·
(35)O edifício do Quartel foi ampliado para o lado direito, pois havia
sido o palacete do argentário Garcia.
(36)Por praça 15 de Novembro entende-se o antigo largo da Imperatriz.
Após a
proclamação da República, o exagero patriótico tratou de eliminar tudo
quanto rescendia a monárquica, a fim de que governos e autoridades não ficassem
comprometidos.
(37)Oficialmente diz-se: 141:875$637 réis, débito público de
que ele não fez mistério, pois no inventário, entre seus papéis,
aparecem lembretes
referentes a dívidas a esse e àquele, que, deixou de satisfazer em tempo
hábil mas
não esqueceria.
(38)
Lei n° 51 de 23 de dezembro
de
1893.
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