CAPÍTULO 5
DO MUNDO NADA SE LEVA
Não elegemos o governo
Silvério Nery como 0 mais visado pelas diatribes da imprensa. Parece-nos que
até foi mais bem-sucedido quanto ao acervo de elogios. No entanto, foi nesse
governo que vieram à tona acusações fundadas ou não sobre desmandos financeiros
de Eduardo Ribeiro, Rui Barbosa, Serzedelo Correa e outros mais, menores em
projeção politica. A que se deve essa campanha difamatória ou justa ao coronel
Ramalho Júnior, ao dr. Pedro Freire... ? Certo que muita gente saída às
carreiras de Manaus, de medo do chicote ou da ameaça de morte, teria motivos
para desencadear mofinas e agressões contra governos e outras autoridades. Isso
sempre foi uma constante nas
administrações. Todavia, o affaire
Eduardo Ribeiro-Rui Barbosa, ou Serzedelo Correa-Rui Barbosa, originado da
"complacência" do governo do dr. Silvério Nery para com seus
adversários políticos, deixa dúvidas no espírito mais eclético. De repente, uma
notícia invulgar, capciosa, com aparência mediúnica (opinião de um dos
polemistas), traz à tona o nome de Eduardo Ribeiro e umas notas desabonadoras
contra as proclamadas virtudes morais do conselheiro Rui Barbosa, interessado
em dois episódios rentáveis (em moeda sonante): o funcionamento do Banco do
Estado (do Amazonas) e a questão do Acre. Temos a impressão de que o estopim
foi aceso pela nota discrepante aparecida no, jornal do Commercio do Rio de
Janeiro, de outubro de 1900, ineditorial assinado por A. J. de Sousa Botafogo,
ao parecer acreditado junto a certas especulações espíritas (existem livros
desse autor ou com pseudônimo semelhante), mas é só uma suspeição. Na verdade,
o caso explodiu antes do referido ineditorial, dias antes, poucos dias antes,
talvez um ou dois dias, mas de qualquer forma a ele se refere o dr. Serzedelo
Correa, autor do artigo em que inicia o desagravo à pessoa do dr. Eduardo
Gonçalves Ribeiro. Vamos transcrever todo o material por ser de suma
importância para a história póstuma do governador atacado pelos adversários
políticos de ontem, que ainda eram muitos e como se sabe estava,m na capital
federal. Comecemos pela extravagante nota titulada "Espiritismo":
Evocado do outro mundo,
onde vivo, acudo ao apelo do sr. João Serzedelo Correa para declarar que nunca
acusei o sr. Rui Barbosa de desonestidade; se tivesse motivos para fazê-lo,
fá-lo-ia pela forma que imprimo a todos os meus atos; não sou bomem de dize tu,
direi eu. O que fiz, guando acusado de ato menos digno, foi defender me,
declarando que aceitava, como ainda hoje aceito, discussão a meu modo sobre
todos os atos de minha vida pública ou particular; não por convencional
respeito à sociedade, que não mo merece, e de quem nada quero, senão que me
deixe morrer em paz; mas para legar respeitado a meus filhos o nome que
respeitado herdei de meu Pai.
É realmente uma nota bem
característica, mas não evoca nada que diga respeito a espiritismo e, sim, a
velhacaria. O morto que assim "fala" é sem dúvida nenhuma o dr.
Eduardo Gonçalves Ribeiro, e a pessoa que publicou o ineditorial deveria ser
algum "fantasma" de dentro do jornal. O leitor, que não conhece senão
por alto a vida recoleta do governador extinto, ignora que ele teve um filho,
mas não se fala de muitos filhos. Ou quem escreveu a nota ignorava. essa
particularidade? Outro fato é necessário aduzir a essas questões: o major
Constantino Nery e seus amigos da bernarda viviam no Rio de Janeiro e não
morriam de amores pelo dr. Serzedelo Correa, fiel guarda da memória do dr.
Eduardo Gonçalves Ribeiro, que defendeu com bravura. Tanto que viria a público
com um longo artigo publicado no Jornal
do Commercio de 22 de outubro de 1900, artigo que vamos transcrever in
totum:
A MORTE DO DR. EDUARDO
RIBEIRO ÁGUIA OU ABUTRE?
Na minha qualidade de amigo do dr. Eduardo Ribeiro, deveria estar
satisfeito com a resposta branda e tímida que o sr. conselheiro Rui Barbosa se
dignou de dar ao meu artigo anterior subordinado ao título acima, resposta esta
em que s. exa. atira para fora de si a responsabilidade das aleivosias contidas
no local de A Imprensa, contra a memória do meu amigo, para colocá-la toda
sobre as costas de algum dos seus auxiliares de redação. Se, porém, a resposta
de s. exa. se limitasse a isso, eu, ou ficaria calado, ou lhe mandaria daqui os
meus agradecimentos por ter vindo a público, com o fulgor de seu nome, declarar
que não havia insultado a memória de Eduardo Ribeiro.
Acontece, porém, que s. exa., em defesa própria, tachou-me de detrator,
e cbamou de calúnias as afirmações que fiz da sua co participação nos proventos
da concessão do Banco do Amazonas.
Volte, pois, à imprensa para que o público saiba que não costumo dizer
senão aquilo de que tenho plena consciência. Disse acima que a resposta do sr.
Rui Barbosa era branda e tímida. Digo mais, é medrosa. Para que s. exa. me
pudesse chamar de caluniador era preciso que pnwasse.
1.° - Que não escreveu a carta a Eduardo Ribeiro, pedindo a concessão do
Banco a Manuel Floriano de Brito.
2.° - Que não escreveu carta idêntica ao dr. Ramalho.
3.° - Que o seu cunhado Carlito que era gerente de A Imprensa, nesta
ocasião, não recebeu 40 % quando os outros sócios só tinham 20 %, porque
precisava repartir com s. exa.
4.° - Que a organização e plano do Banco não fossem produtos da sua
concepção.
5 ° - Que o secretário da sua folha nessa época, o ilustre dr. Joaquim
Pereira Teixeira, não fosse também um dos sócios na aludida concessão, cuja
parte foi vendida aos srs. drs. João do Rego Barros e Lavrador.
Depois que s. exa. fizer isso poderá então
provar que não é sócio nem tem o menor interesse na concessão do Banco do
Amazonas. Isto será fácil de provar a s. exa., porque talvez não haja documento
da sua co participação, o gue virá confirmar o prolóquio popular gue, não
querendo ofender a s. exa., diz que ` rato não deixa recibo":
E já que s. exa. veio em parte bater o mea culpa, declarando que não
escreveu nem mandou escrever a local insultosa à memória de Eduardo Ribeiro,
novamente apelo para suas crenças de católico pedindo que assista à missa que
eu, minha senhora e meus filhos mandamos rezar em sufrágio da alma desse grande
cidadão, e que se realizará na terça feira 23 do corrente, às 9 1 /2 horas da
manhã na igreja de S. Francisco de Paula. Tenho o maior interesse de ver que s.
exa. ora, e garante perante Deus, em que tanto crê, que nunca foi seu intento
profanar a memória do meu grande e desventurado amigo Eduardo Ribeiro. João
Serzedelo Correa
P. S. - Só após ter escrito estas linhas é gue um amigo chamou a minha
atenção para um ineditorial do Jornal do Commercio em que o sr. A. J. de Sousa
Botafogo declarou nunca ter acusado o sr. Rui Barbosa de desonestidade. Daria
resposta cabal a s. s. se não estivesse convencido de que semelhante declaração
não partiu do seu punho, e sim de algum inimigo que porventura possui e que o quis fazer passar por um doido vulgar, servindo-se para isso abusivamente do
seu nome. Realmente não se compreende como e por gue uma resposta a assunto
semelhante venha subordinada ao título de "Espiritismo': Não posso
entender esta mistura: Eduardo Ribeiro, Rui Barbosa, Serzedelo, cartas, Banco
do Amazonas e... espiritismo. A ser que o sr. Botafogo passou a si próprio
semelhante atestado de alienação mental, devo declarar que nada tenho que ver
com o caso. S. s. que recorra ao sr. dr. Teixeira Brandão, especialista na
matéria e diretor da Assistência de Alienados, ou então gue peça cômodos na
casa de doidos da Gazeta de Notícias.
A segunda notícia não é
menos interessante e foi publicada em O Jornal de 22 de outubro de 1900, do Rio
de Janeiro:
AMAZONAS
Quer Fuão Correa, no seu proverbial e inglório afã de fazer escândalo,
ser o iconoclasta dos créditos da nova e honrada administração amazonense. Não
admira, porém, Correa, por estas mesmas colunas já elevou o dr. Silvério Nery
ao sétimo céu da glória política. Mas, naqueles tempos ainda se não havia dado
o célebre encontro de Belém; de Freire e Guapindaia ainda empunhavam qualquer
coisa aí por Manaus ou Copacabana... Passaram-se os dias. veio o fatídico
encontro e os cinqüenta contos não quiseram aceder aos meigos acenos do
fariseu da nova espécie. O homem zangou-se e ei-lo a trovejar nos a pedidos.
Quando aparecerão outros Barés?!... Quem o sabe! Por estes quatro anos pelo
menos... a tua alma será triste... Ao apetite insaciável, ao sabor satânico dos
maldizentes de todos os tempos, não pode agradar a correção, a lisura, a
integridade dos homens de bem.
O maior crime (sic) do eminente governador do Amazonas é ter calafetado
as enormes rachaduras que encontrou no cofre estadual, traçando rijo cordão
sanitário entre a sua Tesouraria e os aventureiros gulosos que enxameavam nas
ruas de Manaus.
Estão fechados os escoadouros dos dinheiros públicos, tão prodigamente
distribuídos durante as últimas administrações. Repressão, por isso, às
paixões, crescem os olhos, pulula a difamação.
Descanse Fuão Correa.
A fumarada do seu despeito não maculará jamais a reputafão e a conduta
irrepreensíveis do ilustre dr. Silvério Nery, que neste momento dirige sábia e
criteriosamente os destinos do seu futuroso Estado natal.
S. eaca. tem o nome feito no país e fica absolutamente a cavaleiro dos
botes da calúnia que ele sabe desprezar e percorre desassombrada e
tranqüilamente a brilhante reta que se traçou como particular e como estadista
de eleição na grande obra da regeneração financeira, administrativa e política
do Amazonas, argamassando o imorredouro pedestal que perpetuará a glória de seu
nome imaculado e querido.
Um conselho ao difamador: não envolva mais a respeitabilíssima família
do dr. Nery nas suas misérias e diatribes.
Quem me avisa...
Ajuricaba.
Rio, outubro de 1900.
Realmente o escriba que
preferiu mascarar-se sob pseudônimo tâo amazonense e que seria, na pior das
hipóteses, um fâmulo a soldo da família visada (a família não foi acusada de
desmandos e, sim, o politico dr. Silvério Nery) estaria em condições de
realizar a ameaça pública contra o dr. Serzedelo Correa, ameaça, como se viu
nas entrelinhas, de morte ou vapulação. Também os correligionários do eminente
dr. Silvério Nery já haviam projetado erguer-lhe uma estátua, da mesma forma
como haviam projetado erguer um monumento a Eduardo Ribeiro, monumento que para
nossa maior vergonha só foi tomado realidade oitenta e oito anos depois de sua
morte e mais ou menos no local onde ele iria chantar um dos maiores e mais
belos palácios do Brasil. A glória e a fama pesam demais sobre as consciências
medíocres: nunca mais falou-se no monumento projetado ao grande Lobo dAlmada,
mas o que se vê nas nossas praças são (afora as homenagens justas) bustos de
Florianò Peixoto, de Santa-Anna Nery, de Pedro I, de fulano e beltrano.
A memória de Eduardo Ribeiro
era para muitos um insulto que conviria afastar do caminho, relegar ao
esquecimento, eliminar brutalmente como foi ele eliminado do número dos vivos
por algum celerado a soldo. Voltamos a lamentar a carência de documentos nos
arranjos improvisados do espólio da vítima duas vezes infeliz. Nunca se falou
dos dois coches, dos cavalos de sela, da mobília cara da Chácara
Havia na Manaus do meu tempo
de estudante de Direito um cidadão português de nome Joaquim Fanal, que havia
sido cocheiro e tratador dos cava.los na baia da Chácara, depois motorneiro de
bonde e, finalmente, operário nas obras do velódromo da Cachoeirinha, de
propriedade do dr. Deodoro Freire. Com aquele senhor de sessenta anos mais ou
menos tivemos nós conversas demoradas, a que às vezes assistia o dr. Deodoro
Freire. Sempre foi nosso costume nâo escrever história a partir de depoimentos
pessoais. Sabemos como procedem as pessoas entrevistadas: ou omitem
propositadamente fatos ou criam sugestões fantásticas. Áquele Fanal falava de
um barco ancorado atrás da Chácara, no igarapé Manaú, que servia a Eduardo
Ribeiro nos seus passeios águas abaixo até próximo do igarapé da Cachoeira
Grande. Possibilidades que não sâo contrárias ao estamento da verdade e que não
têm importância senão pelo fato de que dita embarcação (se é verdade que
existiu) não aparece catalogada no inventário dos bens do falecido, como outros
objetos raros e custosos trazidos por ele da Europa: quadros, porcelanas etc.
Depois da morte de Eduardo
Ribeiro, os amigos e adversários políticos passaram à lixívia. Lavaram a roupa
suja em público. Queimaram a imagem popular do ex-governador, ou tentaram
fazê-lo em nome de uma coisa repelente que se chama politicagem, com o único
objetivo de cimeirar outros ícones. Dizem dos assírios que apedrejavam o Sol
quando o ocaso começava a obscurecer a natureza. E louvavam-no
entusiasticamente quando renascia. No Amazonas, como deixamos dito e repetido,
o Sol dos agraciados padecia desse ritual. Não houve
um só governador, nem antes
nem.depois de Eduardo Ribeiro, que não fosse ultrajado e/ou nâo recebesse
epinícios no antes e pedradas no após. É o costume das qualidades envolvidas no
mistifório da política.
Agora, veremos como se
defenderia o conselheiro Rui Barbosa, no seu jornal A Imprensa, das objurgatórias amáveis do sr. Serzedelo Correa,
também um homem ilustre (25) e devotado amigo do dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro:
AO PÚBLICO
Dizendo que as locais de uma folha não são escritas nem revistas pelo
seu redator em chefe, teria dito o que ninguém ignora. A Imprensa não é diversa
dos outros jornais. Tem, como eles, numeroso corpo de redação, a quem incumbe
essa tarefa, na qual não intervém o seu diretor senão excepcionalmente, guando
a importância do caso o reclama, ou os seus auxiliares o consultam. Não se
tendo dado esta hipótese, nem sendo ocasião daquela, a notícia, que me valeu a
furiosa diatribe de ontem, é tanto obra minha como do meu espontâneo detrator.
Para defesa tão óbvia não valeria a pena de acudir com o meu nome aos
prelos. O que a eles me traz é simplesmente opor a verdade a uma calúnia nova,
cuja inigüidade emparelha com a da suposição, que armou contra a minha honra
mais este gratuito agressor. Nunca fui parte em concessão oficial de espécie
nenhuma No Banco do Amazonas, a que ali se alude, não tive, não tenho sociedade
alguma. Minha amizade cóm o seu concessionário, o sr. MANUEL DE BRITO, vem da
mais respeitável origem. Conbeci-o no eacílio, em Buenos Aires. Sou-lhe grato
pelo carinho com que acolheu o desterrado. Nunca lbe recusarei os legítimos
serviços da amizade. Mas nos seus negócios com o governo daquele estado nunca
me tocou, nem me toca absolutamente o menor interesse.
Rio, 20 de outubro.
Rui Barbosa
(A Imprensa, Rio
de Janeiro, 21 de outubro de 1900)
É estranho que o conselheiro
firmasse opinião tão aberta, ele que já havia embolsado, como se disse antes,
dinheiro do Amazonas para promover defesas que não foram muito corretas do
ponto de vista da história dos nossos limites, haja vista que não era perito em
azimutes. Mas o tópico acima ainda revela outras falhas: o conselheiro
simplesmente não se defendeu das acusações do dr. Serzedelo Correa. O hábil
advogado e jurista costumado a polêmicas arrasadoras, ficou devendo ao público
uma satisfação moral que a nota capciosa acima não soluciona a contento. Recebeu
ou não recebeu os bagarotes? O homem que se finaria louco havia muitas razões
para enlouquecer... e uma delas foi a ingratidão dos corvos.
Vejamos agora o primeiro
artigo do dr. Serzedelo Correa, aquele que deixaria dançando na corda bamba o
conselheiro dr. Rui Barbosa:
A MORTE DO DR. EDUARDO
RIBEIRO ÁGUIA OU ABUTRE?
Sob o peso ainda da dolorosíssima impressão que me causou a notícia da
morte imprevista do meu querido amigo dr. Eduardo Ribeiro, com o coração
retalhado aos golpes da desoladora tragédia com que terminou a existência
terrena daquele grande coração de patriota, é que pego da pena para remover da
estrada que ele tem de percorrer até a posteridade o lixo com que o querem
aterrar e as pedras com que pretendem evitar a sua passagem gloriosa e desassombrada.
Morreu Eduardo Ribeiro! Morreu, porque procurou pelas suas próprias mãos
livrar se do espetáculo degradante que lhe forneciam todos os dias aqueles a
quem ele, na sua grande magnanimidade, tinha arrancado da lama e da miséria,
para colocar na posição de homem. Não é, porém, contra esses que se
locupletaram com seu prestígio e com as sobras da sua generosidade que me venho
postar na defensiva.
Esses, bem os conheço eu. Sei perfeitamente que o papel de Eduardo
Ribeiro na política do Amazonas foi da avestruz meiga e incauta, que errou de
ninho e foi incubar nas margens do grande rio ovos de crocodilo, sem se lembrar
de que da eclosão desses ovos surgiriam os seus mais ferozes algozes, aqueles
que o deveriam devorar. Esses, os atuais dominadores da política amazonense,
que foram encontrados por Eduardo Ribeiro entre as torturas da miséria e as
transigências do caráter, já são de há muito conhecidos de todos e aplaudidos
por aqueles que acham que a ingratidão é a independência do coração. A minha
principal revolta é contra o sr. conselheiro Rui Barbosa, gue, descendo da sua
costumeira altura de águia, veio corvejar como um abutre vulgar sobre os
destroços do meu infeliz amigo. É-me realmente doloroso ser obrigado a
contrapor ao respeito e à admiração que sempre tive pelo talento do
redator-chefe da A Imprensa, e que julgo uma das maiores glórias da
intelectualidade brasileira, a repugnáncia que me inspirou a leitura das linhas
com que noticiou a morte de Eduardo Ribeiro.
É de uma pungentíssima ironia a frase última desta local publicada pelo
órgão em gue o sr. Rui Barbosa defende os seus erros e a sua personalidade,
abusando para isso da confiança dos que fundaram uma empresa jornalística, da
qual lhe entregaram a direção suprema.
"Agora, segundo a comunicação telegráfica, sabemos que o dr.
Eduardo Ribeiro, iludindo a vigilança dos que certamente o cercavam,
enforcou-se, saltando da vida, satisfazendo o seu último sonho de potentado e
milionário."
Potentado! Milionário! Estas duas simples palavras revelam todo um mundo
de infâmias e de calúnias.
Abastado, era Eduardo Ribeiro, e, como de simples capitâo do Exército,
chegou a essa abastança, eu o poderei provar sem um único indicio que possa ser
deprimente para o seu caráter. O sr. conselheiro Rui Barbosa esqueceu-se
provavelmente, quando escreveu ou mandou escrever aquele período com que
rematou a fatídica local, de que esse potentado, esse milionário gue se chamou
Eduardo Ribeiro foi o mesmo homem que recebeu, guando presidente do Congresso
Amazonense, uma carta de s. exa. pedindo seus bons favores para que o senhor
Manuel Floriano de Brito (26) obtivesse dos seus amigos do governo a concessão
do Banco do Amazonas uma das mais escandalosas que se tem visto. E não admira
que o sr. Rui Barbosa tivesse essa falta de memória, quando falha muito mais
grave teve v. exa. escrevendo carta idêntica ao sr. Ramalho, a quem nunca
conhecera e com quem não entretinha relações nem de simples cortesia.
De ambas essas cartas tenho eu conhecimento não só por tê-las lido, como
também por ouvir comentários sobre elas. Tão famosas se tornaram no Amazonas, que por lá havia quem delas soubesse trechos inteiros de cor. Essa célebre
concessão do Banco do Amazonas, de que o sr. Rui Barbosa é sócio, porque o
associado Carlos Bandeira, cunhado de s. exa., foi contemplado com 40 % dos
proventos, não foi provavelmente que concorreu para gue Eduardo Ribeiro se
tornasse potentado e milionário.
Estou aqui, estou a ver o sr. Rui Barbosa declarar em artigo puxado a
longos períodos brilhantes que o fato do seu cunhado ser sócio de uma empresa
não guer dizer que s. exa. o seja. Eu, porém, conheço muito bem a história toda
e sei, portanto, que o sr. Carlito teve 40 % porque tinha de dar metade a s.
exa.
Sei mai.s que após o recebimento da primeira prestação do governo
amazonense, na importância de três mil e tantos contos, o sr. Nery rescindiu o
contrato e os concessionários ficaram calados, por lbes haver o sr. Rui Barbosa
acenado com a possibilidade de uma indenização.
Quem será mais potentado, o dr. Eduardo Ribeiro, que acumulou os seus
haveres pelos seus hábitos de economia, ganhando durante sete anos de seu
governo a soma de trinta contos anuais, ou o sr. Rui Barbosa, qúe meses antes
da proclamação da República
se quis atirar de uma janela abaixo por atrasos em aluguéis de casa e agora
afronta a opinião pública com carruagens? S. exa., antes de ir cuspir sobre um
cadáver respeitável; antes de faltar com o respeito que deve a si próprio, à posição que ocupa e ao nome que adquiriu, deve vir a
público para responder ao sr. Botafogo e destruir as acusações de desonestidade
que lhe foram feitas por aquele senhor.
Por que não o fez s. exa. ?
Porque tinha certeza que nesses fatos seriam impotentes todos os seus
recursos de imaginação. Só admitirei aleives partidos do sr. Rui Barbosa depois gue s. exa. provar que é o imaculado
que apregoa.
Potentado Eduardo Ribeiro?
E foi para a manfestação promovida a esse potentado gue o sr. Floriano
de Brito, sócio do sr. Rui Barbosa, no Banco do Amazonas, concorreu com 5 00$000. Miliionário o
homem que só se aproveitou dos seus sete anos de administração para transformar
a cidade de Manaus, e deixá-la no ponto em que hoje se acha, coisa que bastava
para fazer o nome e a glória do administrador! Por
que motivo acha o sr. Rui Barbosa que Eduardo Ribeiro morreu com o sonho de
potentado e milionário? Será, porventura, porque nunca esteve ameaçado de penhora
por dívidas em confeitarias? O que é que pode levar mais facilmente à grande
riqueza? Comprar terrenos a preços ínfimos pelo seu nenhum valor e valorizá-los
depois por meio de melhoramentos, ou encher as arcas do tesouro (de) moeda
falsa com gue se inundou o país durante a gestão do sr. Rui Barbosa na pasta da
fazenda? S. exa.
leva diariamente a arrancar do fundo do seu tinteiro queixas amargas porque o
injuriaram e porque lhe atiram ao nome calúnzds sobre calúnzizs. Se é que injúrias e
calúnias doem tanto a s. exa. é caso de perguntar por que motivo as exerce até
contra os mortos?
É que o sr. Rui Barbosa, na sua dupla doença de delírio de perseguição e
megalomania, julga-se o único injuriado e o único que pela sua superioridade
não o pode ser. Na sua fase de delírio e de perseguição acha que é caluniado
quando se lhe atira à face a responsabilidade, que lhe cabe exclusivamente, da
desgraçada situação financeira atual. Nos
períodos de megalomania julga-se um inacessível
supremo, e não admite que neste país haja o cérebro que tenha o direito de
pensar em ' desacordo com os seus dogmas. Tenho plena certeza de que o sr. Rui
Barbosa, pondo a mão na consciência, compreenderá que cometeu um ato de suprema
desumanidade insultando assim a memória de um morto, e que reconhecerá, pelo
menos, a nobreza da minha atitude defendente, por espírito de gratidão, um
homem, diante do qual, se existissem interesses, tais interesses estão fechados
no túmulo. Não fui dos apaniguados do dr. Eduardo Ribeiro; nunca explorei a sua
posição. Tenho, ao contrário, cartas dele, como posso provar, agradecendo os
poucos serviços que porventura lhe pude prestar. Quando, porém, a fatalidade
política me atirou daqui por imposição da ditadura, durante a revolta, eu
encontrei em Eduardo Ribeiro um seio amigo que me acolheu, e que soube ser
reconhecido dando-me, nesta difícil ocasião, uma colocação que, além de
honrosa, representava a subsistência de minha família.
Agora, que a senha política do Amazonas está cumprida, e gue era esta -
"E preciso eliminar o negro custe o que custar" ; posso dizer ao sr.
Rui Barbosa que Eduardo Ribeiro, morrendo, deixou ao menos um amigo que ainda
não penalizou a honra de que defenderá a sua memória, custe o que custar.
Que o sr. conselheiro Rui'Barbosa me permita, ao terminar, um apelo às
qualidades, que sei ainda existem na sua alma pessimista. S. exa. é um pai tão
extremoso, quanto eu o sou. É um amigo inexcedível da família. É para o lar a
personificação do carinho e do respeito. Pois bem. É em nome dessas coisas
sagradas da família, que eu peço a s. exa. que, na sua qualidade de crente
fervoroso e de católico superior, vá assistir à missa que eu, minha senhora e
meus filhos mandamos rezar em sufrágio daquele grande e desventurado amigo..
exa. mostrará assim que não foi seu intento e que não está na sua generosidade
cuspir insultos sobre um cadáver.
João Serzedelo Correa
(Rio, Jornal do Commercio, 20 de outubro de 1900)
O leitor estaria na
iminência de requerer comentário breve, ao menos, para certos parágrafos do
artigo acima transcrito, artigo que, pela lógica, deveria vir antes do
primeiro. À circunstância de haver-se extraviado este primeiro artigo do dr.
Serzedelo Correa, deve-se a alternância, que não modificou em coisa alguma a
querela trava.da na imprensa. O dr. Rui Barbosa não responderia aos quesitos
formulados pelo amigo do dr. Eduardo Ribeiro porque não teve condições morais
para fazê-lo. Calar-se e engolir as reprimendas era o melhor alvitre, resguardando
o nome.de possíveis avacalhações, pois é muito certo o ditado: quem tem rabo de
palha não toca fogo no do vizinho. Pretendendo turvar a memória do dr. Eduardo
Ribeiro por despeito, o grande jurista nunca viria a público dizer quanto
embolsou do governo amazonense para certas transações como aquela do Banco
Amazonense. Sua defesa pública foi mascarada pelo receio de ser apontado à
irrisão popular. Não era novidade, na época, e o dr. Rui Barbosa era apenas um
mortal que necessitava comer, andar de carruagem numa cidade em que nâo havia
muitos tipos de condução, sustentar a casa e o seu estadão de gênio, de
"águia de Haia". É por isso que o dr. Serzedelo Correa segwia
indeciso entre depenar a águia e torcer o pescoço ao abutre. As duas aves de presa
se conluiavam no mesmo processo fisiológico de comer viva a vítima e depois
defecar em cima do cadáver. Era a regra geral e não há por que admirar, se já
deixamos escrito dessa filáucia.
Entretanto, há a considerar
no artigo acima uns dois ou três tópicos que o leitor desavisado de assuntos da
história do Amazonas não percebeu nem de longe... Referimo-nos primeiramente à
senha - aliás uma réplica do delenda
Cartago! - em que se reclama a destruição do negro, custasse o que
custasse! Refraseando o que foi dito: "É preciso eliminar o negro, custe o
que custar". O negro que obstaculizava a marcha gloriosa dos nepotes para
a imortalidade ao menos terrena era o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro. E quem
servia de acólito para os Coelho Neto e os Rui Barbosa dizerem mal da terra e
da gente era nada mais nada menos do que os eternos descontentes, os que não
puderam abocanhar fabulosos lucros com as concessões disso e daquilo. O dr.
Serzedelo estava. com razão e procedeu à altura desmascarando a águia famelga.
Um outro tópico bastante pitoresco a que não podemos deixar de fazer alusão é
aquele em que se fala de "ovos de crocodilo", chocados pelo erro da
avestruz. Havia um sujeito sem cultura e até sem muito crédito moral, visado
numa crônica célebre pelo maroto escritor Coelho Neto, cujo apelido era
"Jacaré". Esse indivíduo, cujo pai português enriqueceu honestamente
em Manaus (era pedreiro), chegando a mestre construtor de obras e contratante
de serviços rentáveis do governo (vários governos, desde a Província), jogou
fora, nos cassinos de Paris e de Manaus, a fortuna do pai, a da mulher e a sua
particular, que fizera com encampações etcétera e tal. Era um mote alusivo a
sua chocante postura para com as fêmeas de qualquer escala social, até
criadinhas de cesta sob o braço. Morreu numa dependura de Pedro Sem e não podia
jactar-se de ser branco, apesar do pai português. Foi um dos que, eclipsado o
sol que o protegera sempre, transferiram-se com armas e bagagens para os Nery,
de quem se fizera parente por afinidade. O fato de gastar o que era seu não
perturba a consciência de ninguém; o que se torna estranhável é que quase todos
eles trasfegassem as bagagens para o adversário de ontem, tripudiando sobre a
desgraça do benfeitor. É como diria o poeta Augusto dos Anjos: "A mão que
afaga é a mesma que apedreja".
NOTAS
(25) Serzedelo Correa, O rio
Acre
(26)Esse ilustre
desconhecido
havia obtido, pelo Decreto
n° 416 de 2 de abril de 1900,
a concessão por espaço de
cinqüenta anos
dos terrenos marginais dos
rios Negro, Branco e Japurá a fim de
explorar o solo e subsolo. A
Lei n° 306 de 10 deagosto de 1900,
do
governador Silvério Nery, anulou a concessão.
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