CAPÍTULO 3
ANATOMIA DE UM CRIME
Não escondemos que o dr.
Eduardo Gonçalves Ribeiro foi um cidadão politicamente infeliz depois de deixar
o govemo. Completamente abandonado por amigos e detestado pelos inimigos,
deveria refugiar-se na mais humilhante das posições, se é que já não estava
desde muito em situação de nâó poder conter-se. Sem família constituída, sua
casa da rua de José Clemente Pereira deveria de ressentir-se com a falta de uma
esposa e de crianças. A mulher existia, com quem teve um filho, mas era
obrigada a viver no anonimato, na triste situaçâo de apenas concubina. Os
criados eram poucos e de confiança, ordenanças e bagageiros do Batalhão de
Segurança. Ele próprio não deveria sentir-se muito seguro sozinho naquele
casarão. Pois sabemos entretanto de atentados contra sua vida, numa época em
que a vida valia muito pouco para o caudilhismo provinciano. Eduardo Ribeiro
haveria por seu turno de lamentar as conseqüências do seu ato, elegendo pela
farsa ao amigo Fileno Pires Ferreira. Esse homem guindou ao poder seu cunhado,
dr. Guido de Sousa, o maior patife que já surgiu na administração do Estado,
talvez superior ao célebre Calambange, da oligarquia Rego Monteiro. Era um
indivíduo de mau caráter, vingativo e impiedoso. Dele diria o jornalista Victor
Hugo Aranha, sob o pseudônimo Taliâo (O
Passado, 1902), em artigos publicados no
jornal A Federação, de Manaus, as coisas mais incríveis, atos de
perversidade inauditos, assassinados impunes, surras, desvirginamentos,
invasôes de lares, catilinárias que se estendiam igualmente ao dr. Raul de
Azevedo, outro preto claro maranhense. A quando da queda do dr. Füeto, Guido de
Sousa foi obrigado a sair fugido de Manaus e, durante a saída do navio
(suspeitou-se de que não embarcou), os foguetes de assovio iluminaram o cais do
porto. Com todas essas misérias de que se julgava em parte culpado, um peso na
consciência, Eduardo Ribeiro nâo deveria usufruir de sono descansado. Seu maior
adversário politico, que se julgava. esbulhado do poder, obstinava-se em
cortar-lhe a proa. O sr. Antônio Constantino Nery não escondia de ninguém que
devia o insucesso de sua primeira tentativa. de apossarse do governo à reação
armada do dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro. Ao dr. Fileto Pires Ferreira sucederia
o coronel da Guarda Nacional José Cardoso Ramalho Júnior, vice, e a 23 de julho
de 1900 é eleito o dr. Agrimensor, filho de Quari, Silvério José Nery. As
coisas mudariam então. Em 1900, 14 de outubro, falece Eduardo R.ibeiro em sua
chácara da Chapada do Pensador, hoje nomeada apenas Chapada. O tempo instaurado
entre a eleiçâo do primeiro Nery e a morte misteriosa de Eduardo Ribeiro é
muito curto, mas não o seria para a eleva.ção do coronel Antônio Constantino
Nery à curul governamental.
Essa elevaçâo foi uma
pequena comédia legal. Era vice o monsenhor Benedito da Fonseca Coutinho e a
lei orgânica amazonense nâo permitia a sucessão de parentes do governador(11) ,
a menos que resignasse o titular em tempo hábil. Isso foi feito e assume o
monsenhor. É então eleito por sufrágio universal (a balela de sempre) o coronel
Antônio Constantino Nery para o quatriênio 1904-1908. A ofensiva contra Eduardo
Ribeiro começara antes, meio indiretamente, é fato, pois o trabalho dos Nery
foi quase sempre de solapamento da obra grandiosa do Pensador. Sucederam-se as
famosas encampações a que já aludimos, cujo mérito exclusivo era tirar de A as
prerrogativas adquiridas por contrato ou não e entregá-las a B, em função da
amizade ou do interesse particular. Damos a palavra ao provecto mestre Agnelo
Bittencourt: "Começou Silvério Nery por anular vários contratos firmados
na vigência do seu antecessor considerados lesivos ao Estado, no valor dé
13.796.200 (contos de réis), bem assim fez declarar insubsistentes várias
nomeações de magistrados julgadas contrárias à lei. Mandou apurar as
responsabilidades financeiras do Erário público, achando um acervo no valor de
42.104.820 (contos de réis)". Sim, não há dúvida; era, aliás, uma das
características dos governos daquele tempo desfazer o que os outros haviam
projetado e em contrapartida realizar a.lguma coisa de proveitoso. É duvidoso,
no entanto, que tudo fosse obra inspirada pelos mentores administrativos.
O ranço do ódio pelo governo
Eduardo Ribeiro e continuadores flutuava e fez-se mais indisfarsável quando
assumisse o major Constantino Nery. Então o morto já incomodava menos, somente
sua memória jazia presente no juízo dos amigos mais chegados, como 0 dr.
Bretislau de Castro, Hermenegildo Lopes de Campos, mulato também, tenente
Fernando José Barbosa, maranhense e mulato, coronel José Cardoso Ramalho
Júnior, coronel Afonso de Carvalho, uma minoria (com mais alguns outros) que o
reverenciou após a morte inglória.
As biografias do dr. Eduardo
Gonçalves Ribeiro são curtas(12). E quem dele poderia dizer tudo calou-se
durante toda a vida. Só falaram os que dele precisavam dizer as amargas. O dr.
Eduardo Gonçalves Ribeiro foi militar severo nos julgamentos dos governados,
não procurou adoçar as opiniões que dele se faziam no lar e na rua. Não
queremos dizer que houvesse sido drástico e poluto, como pretendia a oposição.
À outra luz, não acusamos nominalmente quem quer que seja da morte do
ex-governador. As condições um tanto esquisitas dessa morte trágica já foram
encaminhadas pelo erudito historiador amazonense dr. Arthur Cézar Ferreira Reis
quando diz textualmente: "Morreu a 14 de outubro de 1900, em
circunstâncias um tanto misteriosas". Quem informou o historiador possuía
condiçôes para fazê-lo porque viveu a época de defasagem moral que o Estado
atravessava com tantos ambiciosos do poder. No entanto, tudo leva. a crer que o
"negro precisava ser liquidado".
O dr. Eduardo Gonçalves
Ribeiro nasceu em São Luís do Maranhâo a 18 de setembro de 1862. Fez o curso
secundário no Liceu Maranhense. Em 1881 matriculou-se na Escola Militar do R.io
de Janeiro, saindo alferes em 1886. Segundo vimos antes, graduado no posto de
segundo-tenente, seria locado no 3 ° Batalhão de Artilharia-a-Pé sediado em
Manaus. Essa transferência teria sido por medida disciplinar, mas no Álbum descritivo amazônico, 1899, de
Aïrthur Caccavoni, diz-se foi "removido, por fútil motivo, para
Manaus". O motivo, fútil ou grave, não interessa em sua parte civil, pois
que erá da alçada militar e não cremos que houvesse conexã.o com a honra do
homem. Já se disse que ele era republicario convicto e essa convicção
filosófica talvez chocasse os monarquistas. O fato, porém, é que ern seu jornal
O Pensador havia espaço bastante
para as idéis nascentes que os movos arvoravam com destemor. Pelo menos um dos
colaboradores daquele jornal, o dr. Pedro Freire, maranhense poeta, foi
comboiado para a administração, servindo o posto de secretário de Eduardo
Ribeiro.
A morte de Eduardo Ribeiro
não passou ignorada em Manaus. Em torno dela teceram-se os mais diversos
comentários, porém jamais se admitiu houvesse sido autocídio. Do ma.logrado
trabalho do professor Júlio Benevides Uchoa, um homem de consciência reta,
extraímos o seguinte trecho dilucidativo:
Residia o imortal maranhense, na antiga Chácara Pensador, em companhia
do dóutor Menélio Pinto, diretor da Secretaria do Congresso
Legislativo. Profundamente abalado de suas faculdades mentais, à época
do tristíssimo acontecimento gue o vitimou, encontrava-se o doente sob rigorosa
vigilância. Meses antes estivera no Ceará e na Europa a tratamento de saúde. Em
Gênova, uma junta médicaa composta dos professores Ludovici, Maragliano e
Taburini o examinara detidamente, concluindo que o seu restabelecimento se
processaria pouco a pouco. Do velho mundo retornou o enfermo a Manaus a S de
setembro de 1900. Permaneciam junto ao Pensador o doutor Menélio Pinto, o
alferes da Força PúblicaJoão Emídio Ferreira da Silva, o furiél Severino
Augusto de Souza e os praças da mesma corporação, Manuel Laranjeira, João
Evangelista e. josé Santos(l3). Era um grupo bem numeroso de vigilantes, capaz
de velar pela segurança do doente e evz'tar qualquer desatino, que, porventura,
ele cometesse, no estado de insânia em que se encontrava. Passara a noite de
sábado para domingo agitadíssimo, pedindo isso e aguilo, em grande estado
nervoso. Pela madrugada de ontem (13) o doutor Eduardo Ribeiro tirando as
correntes da rede, sacudiu-as, jogando zìmas nas outras. Tiradas estas por um
dos enfermeiros, ele pediu um pouco de leite. (...) E, enquanto seu guarda saía
do quarto para pedir o líguido, o grande homem, só, isolado por minutos, pôs
termo a sua utilíssima exzstência.
Momentos depois, quando o tenente Emídio da Silva entrou no aposento, o
Pensador estava morto. Suicidara-se no seu próprió quarto de dormzr uma sala
junto à varanda, com janelas para o quintal e pátio. Tinba enlaçado no pescoso
uma corda de mosquiteiro - uma corda de cor verde - que pendia do armador.
Eduardo Ribeiro jazia com a cabeça para o lado direito, sentado no soalho, a
cabeça e o tronco apoiados na parede, as pernas estendidas ao comprido, os pés
ligeiramente cruzados. hestia na ocasião um camisão de dormir de linho branco e
meias pretas com listas brancas. Às 8 horas e 30 minutos chegavam à Chácara os
médicos Carlos Grey, assistente do Pensador, Clementino Franco, Alfredo Araújo
e Miranda Leão, que fizeram os respectivos exames. O corpo estava na posição em
que fora encontrado às S boras e 30 minutos, Do laudo subscrito pelos médicos
que fizeram o
levantamento cadavérico, consta o seguinte: a cabeça presa por uma corda
de linho fixada na parte superior de um armador de rede; a corda estava passada
em volta do pescoço e atada por nó corrediço; o restante da corda passava em
uma roldana, das destinadas a suspender o mosquiteiro, fixada no centro do teto
do guarto; a cabeça do cadáver achava-se reclinada sobre a espádua direita. A boca
entreaberta deixava ver a extremidade da língua presa entre as arcadas
dentárias; os olhos cerrados e a face vultuosa e congesta. O braço direito, em
meia flexão, repousava sobre o terço superior da coxa do mesmo lado; o
braço esguerdo pendente sobre o soalho, repousando sobre a face dorsal
da mão direita, que se achava em supinação. Pélo hábito externo, não notaram equimoses ou outros
sinais de violência gue denunciassem luta ou haver se ele debatido na ocasião
da morte. A posição do cadáver, disseram os médicos, era naturalíssima.
Chácara de Eduardo Ribeiro
O palco foi bem preparado
para a cena do achamento do cadáver. Começa-se a desconfiar do laudo médico,
"asfixia por estrangulamento", quando é instaurado o item "corda
de mosquiteiro". O mosquiteiro de que se fala é daquele tipo suspenso do
teto, de filó ou talagarça, que se fecha sobre o leito, e não o popular
"boi" de estrutura quadrada. Como se pode conceber que uma roldana
pequena, parafusada no caixão de madeira do teto, pudesse sustentar um corpo?
Ou mesmo que a corda desse mosquiteiro, geralmente fina, suportasse um corpo,
mesmo magro e doente? Eu não sou entendido em medicina legal, mas sempre se
ouve dizer que o enforcado de verdade apresenta sinais de asfixia muito
diferentes dos que aparentava o morto. Geralmente a língua fica exposta e os
olhos arregalados. Eduardo Ribeiro apresentava. apenas a extrèmidade da língua
presa entre as arcadas dentárias e os olhos cerrados, embora as faces
estivessem intumescidas. Mas não se diz se violáceas. Urn problema para
qualquer médico discutir.
Eu não acredito, jamais
acreditei nesses sintomas tão contrários ao costumeiro indicativo da morte por
estrangulamento. E há, como contrapeso, aquele copo de leite de que ninguém
mais fala, se foi utilizado ou não foi. O processo policial é falho em muitos
pontos; nâo se mandou examinar o conteúdo do copo nem houve necropsia. Como é
que uma corda por menos espessa que fosse não deixou matca no pescoço da
vítima? Como é que esta estava sentada contra a parede e enforcada? Que ponto
de apoio para o corpo em suspensão? E, mesmo que não houvesse suspensão, que
modo estranho de um cristâo enforcar a si próprio. São questões que não foram
argüidas pelos médicos assistentes nem pela Policia. Não se fez um inquérito a fim
de apurar as causas alógenas da morte. No entanto alguém, um médico italiano
que vinha acompanhando o doente, estranhou aquela cena tão pouco revestida de
naturalidade, chegando ao clímax de declarar suspeita de homicídio, de
assassinato! Para escurecer ainda mais o episódio trágico, o processo sumira da
Polícia!
Logo depois da morte de
Eduardo Ribeiro, o tenente Fernando José dos Santos Barbosa, do Exército, o
mesmo que nas bernardas verificadas contra o dr. Eduardo R.ibeiro ficara ao
lado deste e do major Geógrafo de Castro Silva, retirou-se de Manaus para o
Maranhâo e nunca mais deu notícias. O mesmo aconteceria com os médicos dr.
Ludovici e Hermenegildo de Campos. Seria inútil perguntar a razão dessa fuga.
Os inimigos de Eduardo Ribeiro, guindados ao poder, não perdoavam a ninguém.
Dona Maria Barbosa, casada com o tenente Barbosa, tinha um filho, Patrocínio,
da Polícia Militar, tio do sr. Telamon Barbosa Firmino, recentemente falecido.
Foi o tenente Barbosa quem relatou à irmã Sebastiana Barbosa Firmino (prima de
minha mâe) que se dizia à boca pequena haver o Pensador sido envenenado com
umas ervas trazidas de Santarém. É claro que não seria preciso buscar ervas em
Santarém para eliminar, via oral, um inimigo. Suspeitava-se de que o
"remédio" viera de Faro, via Santarém. E não custava nada a um dos
criados e serventes preparar uma dose no leite. Esse copo de leite me parece o
busílis da questâo ou a petra scandali.
O mistério do copo de leite,
título para uma comédia policial ou novela de sensação.
O professor Júlio Benevides
Uchoa tem, no trabalho referido, este parágrafo candente, que resume nosso
pensamento a respeito, pois ele publicou a versão oferecida por mim e publicada
igualmente em meu livro O aguadeiro:
Muitas versões correm por aí a respeito do terrível drama que eliminou o
saudoso maranhense, sem nenhuma comiseração à insanidade que combalira o
organismo, provocada esta, possivelmente, pelo
veneno que lhe fora inoculado, mesmo porque os politicóides sem
entranhas temiam o seu restabelecimento, como predissera o professor Ludovici,
eminente psiquiatra italiano.
O inventário proporcionou
muitas desinteligências e críticas a favor dos herdeiros. E é sobremodo curioso
como o filho de Eduardo R.ibeiro não aparecesse, nem sua prima, nem o sobrinho,
mas somente a "mãe" Florinda Maria da Conceição, que aparece na
qualidade de "mâe e herdeira única e universal do dr. Eduardo Gonçalves
Ribeiro". Diante da lei é assim. Não haveria por que contestar. Morto o
homem, os abutres afluíram em chusma sobre os despojos. Surgiram contas
fantásticas, até da Ligure Brasiliana, no valor de cento e vinte e nove contos
de réis. Uma conta do português Caetano Monteiro, do valor de dez contos de
réis, subiu escandalosamente para cinqüenta contos de réis(l4). Diz o doutor
Edmundo Levy:
Florinda Maria da Conceição ergueu sua voz, protestando, mas foi em vão.
Rebelou-se contra o desaparecimento de um piano que ela mesma despachara na
Alfândega, insurgiu-se contra a "dívida de Caetano Monteiro da Silva por
ser de dez contos e não de cinqüenta'; bradou contra as contas "dos
médicos doutores Ribeiro da Cunha, Antônio de Figueiredo e Bulcão Viana por
achar excessivas'; não concordando `ábsolutamente com a do dr. Macedo de
Bragança ".
Meteram a mão no espólio, os
amigos e conhecidos de ontem. Até o túmulo, que deveria de haver sido uma
homenagem do Estado, resumiu-se primeiramente numa modesta placa de mármore,
sendo depois substituído pelo atual. A abertura do testamento veio revelar duas
coisas: que o dr. Eduardo Ribeiro não legou ostensivamente nada ao filho
(ilegítimo?) e que amigos e inimigos politicos corvejaram em cima do seu
legado. O dr. Edmundo Levy deu-nos a relação desse monte tão miseravelmente
rapinado:
Analisando-se desapaixonadamente a avaliação, não há como deixar de
lenvantar a voz contra o exagero dos preços dados a todos os bens, como bem
protestou, através do seu procurador, a velhinha Florinda Maria da Conceição,
"mãe e herdeira única e universal do dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro,
capitão de Estado Maior': Basta que se considere que um terreno, situado na rua
José Clemente, esquina da avenida "Eduardo Ribeiro'; medindo vinte metros
por ambas as frentes, foi avaliado, naquela época, em trinta mil cruzeiros. O
terreno do Umirizal, com uma área de quinbentos e sete mil quatrocentos e
cinqüenta e dois metros quadrados, foi estimado em oitenta mil cruzeiros. A
chácara Pensador foi apreçada por duzentos e dez mil cruzeiros. Para melhor
evidenciar o propositado despropósito da
avaliação, cite-se ainda que a "um tanque de zinco para mil galões
d`água" foi dado o valor esdrúxulo de oitocentos cruzeiros (15).
Parece que com Eduardo
Ribeiro feneceu também sua fazenda adquirida com o dinheiro dos seus proventos.
Perdura entretanto a dúvida sobre as aquisições feitas e os bens outros
deixados e awaliados em 2.644.117 cruzeiros. As casas que ele deixou não foram
avaliadas corretamente nem estão na soma apresentada acima por nós. Eduardo
R.ibeiro possuía um landolé tirado por dois cavalos, uma casa na rua de Enrique
Martins e outras mais, que não constaram do arrolamento dos bens imóveis. Uma
súcia de gananciosos locupletou-se com a maioria dos bens imóveis, que não eram
poucos, graças a uma manobra da nossa justiça. Eu na minha juventude cheguei a
conhecer vários indivíduos de reputação admirada, entre eles o desembargador
dr. Emílio Bonifácio Ferreira de Almeida, que fora o Juiz Municipal de Órfâos e
Interditos, nomeado para a execução do inventário; conheci também o major (da
Guarda Nacional) João Batista da Faria e Sousa, testemunha do inventário. Com o
provecto desembargador eu não tinha familiaridades, mas em 1929-30 conheci de
perto o segundo, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Ouvi
dele coisas de estarrecer a respeito das manobras politicas de antanho em que
era envolvido o nome do dr. Eduardo Gonçalves R.ibeiro. Por isso e por outras
informações orais e registros jomalísticos, não acredito que o falecido em
circunstâncias tâo misteriosas houvesse testado apenas para a "mãe"
Florinda Maria da Conceição. Esse é mais um mistério na vida do grande homem,
mistério difícil de resolver. Em todo o caso, ficaram as insinuações dos
periódicos acerca da existência daquele filho a quem ele não se referiu no
testamento.
Ademais disso, conheci e
privei da amizade do dr. Deodoro Freire, filho do maranhense dr. Pedro Freire,
que fora secretário do dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro na segunda administração.
Naturalmente, o moço Deodoro Freire nâo era contemporâneo dos fatos
desagradáveis que culminaram com a ascensão dos Nery ao poder, mas deveria
saber, por via de seu pai, dr. Pedro Freire, dos acontecimentos universais
gerados pela política baré. O dr. Deodoro Freire relatava fatos ligados àquela
política de exceção, até a história de uma carta anônima recebida pelo dr. Eduardo
Ribeiro, na qual alguém o punha no segredo de uma conspiração para matá-lo.
Essa carta nâo foi encontrada entre os papéis do morto, como não seriam
encontrados outros documentos privados. Nunca se soube realmente que destino
foi dado ao arquivo particular do dr. Eduardo Ribeiro, mas isso também não é de
admirar, pois que houve tempo suficiente, entre o achamento do corpo e a
intervenção da justiça regular, para que se desse sumiço a todos os papéis
existentes ná Chácara Pensador. Somente os amigos do dr. Eduardo Gonçalves
Ribeiro não acreditaram nunca em sua morte voluntária. Nenhum dos homens mais
chegados a ele: coronel Ramalho Júnior, coronel Afonso de Carvalho, dr. Pedro
Freire, dr. Anísio Palhano, coronel Benevides, coronel Otoniel de Lima e mais
uma centena de pessoas fiéis à memória do amigo. Entretanto, é singular a
maneira como essas pessoas receberam, sem protesto remoto ou atual, a causa mortis. Não acredito num
conchavo para silenciá-la. Acredito, isso sim, num silêncio imposto pelos interessados
em apagar os vestígiós do crime.
Por outro lado, não devemos
esconder que adversários ontem de Eduardo Ribeiro eram depois filiados às
hostes dos governadores Silvério Nery e Constantino Nery Nâo devemos esquecer
igualmente que mortes misteriosas, desaparecimentos inexplicáveis de cidadâos,
tomada à força e ilegalmente de propriedades particulares, cambalachos
administrativos, doações de dinheiros públicos a parentes, um rol de misérias
conhecidas e provadas caracterizaram os governos nerystas. Nerysmo ficou sendo
sinônimo de politicagem condenável. Há, ainda, para caracterizar o abismo de
negociatas fraudulentas desses governos, os empréstimos comprometedores da
autonomia do Estado, o Flint, na praça de Nova York, no valor de dois milhões
de libras esterlinas; a emissâo de apólices estaduais que lesou a população e
enriqueceu o filhotismo;
o empréstimo
Marseillaisei(16), o Banco do Tostâo, a safadeza Benchimol etc. Por causa da
denúncia daqueles empréstimos o jornal A
Federação foi empastelado e o governo Nery teria de pagar uma
indenização-acordo de 150 contos de réis ao jornalista Euclides Nazaré.
Portanto, num regime de descalabros morais não seria duvidoso que alguém
silenciasse ao pobre vezano a fim de impedir que descobrisse os podres... ou por
vindita de atos passados(17). Já circulavam ameaças. Não está descartada a
possibilidade de haver sido aplicada a eutanásia ao paciente da Chácara
Pensador pelos médicos assistentes ou por um deles somente. Naquelas nossas
tertúlias com o engenheiro dr. Deodoro Freire (Deodoro em homenagem ao
marechal), ele admitiu haver escutado de seu pai, muitas vezes, ter havido um
complô contra Eduardo Gonçalves Ribeiro enfermo. O pai do dr. Deodoro Freire
não aparece nunca entrè os camaleões que se bandearam para o nerysmo. Ficou
fiel ao amigo, porque amigo já era desde São Luís, quando editavam o jornal O Pensador e nele escreviam. Essas
opiniôes esparsas fornecem a média da opinião pública sobre o misterioso
acontecimento, e ninguém punha crédito num autocídio tão revestido de estranhas
circunstâncias. A prova substantiva de que o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro era
estimado pelo povo de Manaus está no ato do seu enterro. Foi uma apoteose,
ritual menos político do que espontâneo, que alvoroçou a população e levou-a em
tumulto à distante Chácara Pensador. O governo pôs à disposição do público dez
bondes sem ônus, que ficaram lotados e vieram deixar as centenas de passageiros
na curva da via Vila Municipal, lado do cemitério de São João Batista. Além
disso, a multidão que se comprimia nas cercanias da necrópole e dentro só
poderia explicar o grau de simpatia humana que aquele homem desfrutava. Falaram
à borda da campa os drs. Porfírio Nogueira, secretário do governo, pelo
Estadol(18); major Domingos Andrade, pela maçonaria;
Alberto Leal, pela colônia
portuguesa; Barbosa Lima, pelo jornal Amazonas;
coronel Afonso de Carvalho, pelo Congresso de Representantes; Leonel Mota, em
nome da loja maçônica Esperança e Porvir; e José dos Anjos Traíra, pelos
operários(19). Ficou enterrado em sepultura perpétua, na quadra onde colocaram
uma placa de mármore doada pela Marmoraria Veronesi. Mais tarde seria erguido 0
mausoléu com seu busto cimeiro e fardado. Depois de Eduardo Ribeiro só houve um
homem que se preocuparia com a cidade: o dr. José Francisco de Araújo Lima,
médico paraense. Os demais trataram de desarticulá-la de seus ornamentos,
maltratá-la com inovações bárbaras, abater as árvores frondosas que
ornamentavam as ruas e avenidas, "corrigir" os "defeitos"
arquitetônicos dos palácios e monumentos, desafiar a posteridade com placas
promocionais e deixar ruir os testemunhos de nossa história material.
NOTAS
(11)Era vice-governador na
administração do sr. Silvério Nery quando 0 major Constantino Nery, senador da
República, pretendeu candidatar-se ao governo. O sr. Silvério Nery renuncia ao
cargo nos termos da Constituição vigente, assumindo 0 monsenhor, e o major
Constantino Nery é eleito.
(12)Eduardo Gonçalves
Ribeiro, Diário Ofícial, 1985, p. 52.
(13)Leia-se tenente José dos
Santos Barbosa
(14)Comerciante português,
proprietário de seringais em vários rios do Amazonas. Veio para o Amazonas
arrastando os tamancos. Subiu graças à.ajuda de compatriotas e alcançou, por
benemerência de Eduardo Ribeiro,
algumas concessôes. Mais
para diante achou de envolver-se em mofatras na qualidade de presidente do
Banco do Estado do Amazonas, banco que ele fraudou e contribuiu para fechar as
portas, lesando
centenas de acionistas. Era
igualmente conhecido como o algoz de viúvas dotadas.
(15)Essa publicação está
assinada por Agnelo Bittencourt, Edmundo Levy e Júlio Uchoa, e se constitui
numa das raras fontes biográficas do Pensador.
(16)O célebre conchavo,
empréstimo Marsellaise, foi acordado pelo sr. Constantino Nery, na base de
oitenta e quatro milhões de francos com juros de cinco por cento ouro ao ano,
em maio de 1906. U ma espiga que recebeu o governador Bittencourt e que esgotou
as possibilidades financeiras do Estado.Para concluir, a Société Marsellaise
roubou ao Amazonas uma boa quantidade do nosso suor e de nossas lágrimas, a fim
de que mais tarde o general De Gaulle viesse dizer que somos um pcwo que não
merece confiança. Entretanto nunca dizem os franceses que ficaram com cerca de
quatro mil sacas de café brasileiro, durante a Primeira Guerra Mundial.
(17)Euclides Nazaré, A
Federação. A oficina desse jornal empastelado volveu a ser a
revista Cá-e-Lá, de
propriedade do dr. Aprígio Martins de Meneses. Em 1930
foi ela empastelada pelo
povo e o restolho adquirido pelo gráfi.co sr. José
Cardoso (sénior) que reabriu
a oficina com o nome otimista de Tipografia Fênix.
(18)Era irmâo do deputado
dr. Antônio Nogueira e
secretário do
governo Silvério Nery e
considerado
um dos maiores borrachos da
época.
(19)O popular
José dos Anjos Traíra era
àquela altura
administrador do cemitério.
Deixou fama
de carnavalesco e possui
descendentes em
Manaus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário