CAPÍTULO 6
SEGREDOS E MISTÉRIOS
Quem foi a pena que se lembrou de memorizar a pessoa de Eduardo Ribeiro?
Quem foi o governo que se lembraria de erguer uma simples herma ao grande
benfeitor da cidade? Existe uma lei, não revogada, que autorizou construir-se
um monumento ao ex-governador e ex-deputado estadual. Igualmente foi autorizada
a feitura dos retratos do dr. Eduardo Ribeiro e coronel Ramalho Júnior para a
Intendência Municipal, porém é duvidoso que tais retratos ainda existam depois
da lavagem despectiva dos governos sucessores(27). Nenhum deles se deu ao
empenho de erigir o monumento porque ainda estava fresca a ojeriza ao grande
morto. Nenhum. Os que sucederam ao coronel Ramalho (e este está incluído no rol
dos ingratos) faziam causa
comum com a atmosfera de antipatia à memória de Eduardo Ribeiro, e não
duvidamos dé escrever a causa: eram ainda os velhos inimigos, os promotores das
arruaças de 1892-1893. Outros apenas compraram a briga: Antônio Clemente
Ribeiro Bittencourt, Jônatas Pedrosa, Pedro de Alcântara Bacelar e o velho
"chinês paliteiro" César Augusto do Rego Monteiro, o caloteiro-mor do
funcionalismo, que por ocasião das festas da Independência do Brasil ofereceu
aos gozadores sociais um baile à Segundo Império no Palácio Rio Negro, enquanto
lá fora o povo morria de forne.
A propósito, cabem aqui mais duas versões sobre a morte misteriosa do
dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro. Uma das mais antigas versões populares que conheci
dizia que o.Pensador fora envenenado com um charuto. A segunda, só recentemente
conhecida, afirma havê-lo sido "a mandado do barão de Santa-Anna Nery".
Não apoiando a segunda , por muito incoerente, deixamos de lado a primeira por
não comprovada. Entretanto ela é verossímil.
Tanto quanto a velha desconfiança de que fora envenenado com ervas
trazidas de Santarém. O que não podemos deixar de confirmar é que havia dolo na
afirmação "é preciso liquidar o negro". O que nos resta opinar, e
isto é uma opinião pessoal, é que Eduardo Ribeiro deixou uma obra à vista, uma
mensagem de sua capacidade criativa, enquanto muitos dos seus detratores só nos
legaram leis, decretos, papéis, projetos, vítimas imoladas, empastelamentos de
jornais, dívidas, calotes. Fazemos uma exceção para o coronel Constantino Nery:
aí estão os ed ifícios da Biblioteca Pública e da Penitenciária, mas também ele
se afundou nas negociatas dos empréstimos e da emissão de apólices, um craque
nas rendas do Estado. Mas, à procura da verdade, devemos levar em consideração
umas tantas circunstâncias ainda referentes à morte do dr. Eduardo
Gonçalves Ribeiro. Cerca de
três meses após a assunção do cargo de governador do Estado, o sr. Silvério
José Nery teria de haver-se com o problema da morte suspeita do dr. Eduardo
Gonçalves Ribeiro, o inimigo número 1 da família. As desconfianças se aproximam muito, embora não
estejamos pretendendo afiançar nada de definitivo nem acusar ninguém sem
provas. O sr. Silvério Nery dá o comando
do Batalhão de Segurança ao major Adolfo Guilherme de Miranda Lisboa,
comissionado tenente-coronel. O primeiro ato daquele péssimo cidadão amigo do
dr. Constantino Nery é elaborar um relatório sobre o estado
"indisciplinado e péssimo" dos soldados sob seu comando. Começou mal, numa sórdida vingança contra os mesmos
soldados que puseram cerco ao 36° BI. Aliás, o caráter desse militar que depois
passaria a superintendente da capital era repugnante: sua folha corrida acusava
atos pregressos de violência inaudita, no Pará, e seria ele o comandador dos
empastelamentos dos jornais de Manaus e do assassinato do primeiro jornalista
manauara, Osvaldo Batista, do Correio do Norte, jornal da oposição. Nessa
atmosfera de arbitrariedades, de assaltos ao Tesouro, de mandonismo e de
politiquice desvairada feita na base da traição e do sabujismo, havia
foliculários com capacidade de coragem para escrever o que segue, referindo-se
ao sr. Silvério José Nery:
Por que os não deporta para
o Rio Branco, como fez a Luís Galvez? Por que não os assassina, como fez ao
malogrado Pensador? Por que não os vende a retalho como está fazendo ao
Amazonas, hipotecado a ingleses e norte-americanos? - L. O.
(A Província do Pará, 10 de outubro de 1902).
Havia ambientação para o sinistro desfecho? Havia... O antigo alferes
"parlamentar" Adolfo Guilherme de Miranda Lisboa, que muito serviria
aos patrões Constantino Nery e general Bento, durante a sarrafascada de 1892-1893,
agora dispunha de crédito politico, era cumpridor de ordens do governador
Silvério. Enriqueceu, foi a Paris, foi nomeado superintendente da capital,
deixou nome, construiu um palácio na Vila Municipal Operária e se foi depois.
Cerca de cinqüenta metros adiante o coronel Constantino Nery mandou construir
também o seu palácio, que ficou apenas nos muros, na esquina das ruas Teresina
e Maceió. É que, como diz a sabedoria popular, "casa de esquina, morte ou
ruína". O mandonismo expirou e com ele os frutos maléficos. Todos eles se
foram, amaldiçoados pelo povo. Mas o coronel Constantino Nery teve sorte ma.is
ingrata: dentro do seu palácio - sinfonia inacabada - cresceu uma árvore, que
eu, ginasiano, cansei de ouvir dizer ser o "fantasma do velho Dinis"(28).
A alma humana possui uma individuação imprevisível. O mesmo militar que
causaria tantos danos a pessoas físicas, em Manaus e Belém, seria, como
superintendente de Manaus; um homem operoso. A ele se devem ma.is coisas dignas
de mostradas do que ao sr. Silvério Nery
governador e senador. Mas
desejo especialmente referir aqui a lembrança que teve o superintendente Adolfo
Lisboa (o Mercado Municipal leva seu nome na fachada) de ir a Paris e de lá
trazer todos os ornamentos para o grande Carnavàl de 1902... E não era
carnavalesco, a julgar o que dele escreveu o professor Agnelo Bittencourt:
"(...) que foi um esquisitão, um hermético, espiritualmente trancado em si
mesmo (...)".
E todavia dele se dizem outras maravilhas: mandou embelezar os bairros
denominados Vila Municipal Operária (onde está o chalé estilo art nouveau, pelo povo conhecido corrio
Castelinho) e a Vila Lisboa, no bairro do Plano Inclinado. Lá. construiu
algumas casas para operários, bonitas residências que nunca foram de operários,
realmente, e... apossou-se democraticamente de cinco mil contos de réis, de que
jamais prestou contas, seguindo à risca as lições, ainda democráticas e
republicanas, dos seus patrões.
Ejusdem farinae...
Há muitos anos foi-me dado de presente por descendente do cidadão Tecelino
de Almeida uma coletânea de produçôes desse poeta, poucas em manuscrito, a
maioria em recortes de jornais não-identificados. Eu andava interessado em
resgatar a memória dos intelectuais da terra e consegui publicar pequeno livro
sobre o sergipano Cid Lins, In memoriam
de CidLins. Apenas há as iniciais T A., que não duvido sejam do citado
poeta. Igualmente não podemos afiançar fosse publicado o soneto, muito
descoberto o tema para ser ignorado dos janízaros da política persecutora.
Tecelino de Almeida não era, creio eu, pelas informações obtidas de membros da
família já distantes de sua época, um homem voltado à luta, nem mesmo daquela
espécie de politico que se torna insensível às diatribes dos adversários. Se o
poema abaixo transcrito foi publicado não houve repercussão, pois não consegui
alcançar nenhuma nota de referência. Em todo 0 caso, vale como um documento à
parte, pois é intransigentemente acusativo, não escondendo a participação
criminosa da mente e da mão humanas. É de crer-se haja sido o soneto escrito
sob a impressão primeira do impacto da morte do Pensador. É de acreditar-se
também que ninguém esperasse aquele desfecho trágico. E sobretudo não resta
nenhuma dúvida de que o povo jamais pôs crédito num autocídio. Não se apontavam
nomes porque num caso semelhante em que a Justiça se empenhou em destruir as
provas, nada restaria senão a suspeita tenaz, firme, imorredoura de que
liquidaram o negro a fim de se pouparem à maledicência pública.
DIGNA CEDRO
Morreu o Pensador! É o
dolorido
grito que se ouve em toda
parte aflito,
no lar, na rua, como um eco,
o grito
da revolta na dor humana
ungido.
O silêncio da cova
abscondito
guarda um mistério e o
impune olvido
dos seus cruéis algozes, mas
duvido
que o remorso se afaste do
precito.
Era um justo e amou a terra
estranha
que embelezou com seu
trabalho insano,
dos maus ganhando a invejosa
sanha.
A mão que o fulminou não tem
memória,
mas a vítima aguarda lá no
arcano
"á Justiça de Deus na
Voz da História':..(29)
T. A.
Uma de nossas cruciais curiosidades veio a ser que tipo era o homem
Eduardo Gonçalves Ribeiro. Pelas fotos mais expressivas, obtidas quando do
apogeu, vê-se que seria baixo e entroncado, pois essa é a impressão que dá sua
cabeça inteligente enterrada nos ombros, quase escondendo o pescoço. Alhures
fizemos menção a uma possível semelhança, mas sua biotipia de moço não é
idêntica à foto mais comum. Valemo-nos para registrar essa distinção do breve
retrato que dele fez seu professor Manuel de Béthencourt, em artigo publicado
no jornal A Federação de 18 de
setembro de 1898, por via da passagem muito badalada do aniversário do
Pensador, quando lhe foram prestadas muitas honras, até um banquete no Hotel de
França.
Naquela altura, e pelo que salienta o articulista, Eduardo Ribeiro
andaria pelos trinta e seis anos, pois nascera, como se disse antes, a 18 de
setembro de 1862. Uma idade assaz conveniente para as grandes ilusões com a
política e os homens. Manuel de Béthencourt alude de passagem à ingratidão dos
homens.
O que nos interessa mesmo no artigo de três laudas e um terço,
composição batida, é a imagem física de Eduardo Ribeiro, descrita sucintamente:
dizia que há vinte anos, portanto em 1878, era ele articulista professor
particular no Maranhão, quando um dia bate-lhe à porta um "rapaz de
estatura mediana, magro, de voz abaritonada, fluente no dizer, rápido na
emissão do pensamento". Eduardo Ribeiro queria estudar francês e
matemática. Naquela altura deveria estar o pretendente com dezesseis anos,
portanto era preparatoriano e estaria já com intenções de cursar a Escola
Politécnica do Rio de Janeiro. Na escola particular do professor Manuel de
Béthencourt, segundo ele próprio o diz no artigo referido, já andavam os
estudantes Pedro Freire, "que se nutria da leitura de Hugo"; Pacífico
Cunha "alimentava-se com o credo transformista de Haeckel"; Domingos
Machado "preludiava ao seu amor pela gramática e filologia
portuguesa"; e Paulo Pereira "se deliciava com a feitura de uns
versos". Só se fala no nome de Aluísio Azevedo de passagem, quando da
comemoração do centenário de Luís de Camões. Essa plêiade possuía uma academia
ou associação literária de que Eduardo Ribeiro era o presidente, talvez líder,
associação que disputava o prestígio da atmosfera cultural do Maranhão com
outra de igual teor onde Aluísio Azevedo era pessoa de influência. Desses
jovens magnatas do pensamento eclético (o articulista deixa entender que seria
assim mesmo), tanto o dr. Pedro Freire
como Eduardo Ribeiro moviam-se sob a inspiração do triângulo e dos três
pontinhos mágicos, ou da pá e compasso.
Um dos particulares da vida de Eduardo Ribeiro, envolvido em nebuloso
mistério, é sua ascendência. Parece que ninguém quer falar ou ousa transpor os
limites da confidência. Daí supor-se inevitavelmente que sua origem fosse do tipo
daquela que humilhava o grande Machado de Assis, filho de lavadeira e de
mata-cachorro. As palavras estigmatizantes do major Araripe naquele artigo
transcrito parecem levantar a ponta do véu que obscurece o mistério: filho de
quem, pobre e sem nome, fez-se gra~as a um estimulo interior, escravo com toda
certeza alforriado e também arrastando uma tara que se manifestaria no homem
adulto. E qual seria, ao fim e ao cabo, a impressão do major Araripe ao saber
do "suicídio" do dr. Eduardo
Ribeiro? Não possuímos
nem motivos nem documentos para dizê-lo. O major Araripe manteve-se
aparentemente em silêncio durante o resto de sua vida.
NOTAS
(28)
Trata-se certamente de Sebastião Dinis,
um dos mais antigos concessionários da
abertura da estrada carroçável Manaus-Rio
Branco e a quem os governos seguidamente
calotearam até a gestão do coronel Constantino Nery
inclusive e etc. e tal. A viúva, lesada em cerca de quatro
mil contos de réis, mexeu com todos os santos do
inferno e diabos do céu, mas nada recebeu de volta. O velho Sebastião
Dinis acabou esticando as botas e amaldiçoando os
Nery, com outros fornecedores do tipo daquele
português Florêncio Rodrigues de
Almeida, morto na miséria em Portugal. O
mesmo fim teve o construtor do Teatro Amazonas e de outras obras
majestáticas, Manuel Coelho de Castro.
(29) Essa "chave de ouro" emprestada é de um soneto
antológico de dom Pedro II no exílio, colocado na
ortografia
moderna.
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