segunda-feira, 23 de maio de 2016

A trajetória de Eduardo Gonçalves Ribeiro VI - MÁRIO YPIRANGA MONTEIRO



CAPÍTULO 6


SEGREDOS E MISTÉRIOS


Quem foi a pena que se lembrou de memorizar a pessoa de Eduardo Ribeiro? Quem foi o governo que se lembraria de erguer uma simples herma ao grande benfeitor da cidade? Existe uma lei, não revogada, que autorizou construir-se um monumento ao ex-governador e ex-deputado estadual. Igualmente foi autorizada a feitura dos retratos do dr. Eduardo Ribeiro e coronel Ramalho Júnior para a Intendência Municipal, porém é duvidoso que tais retratos ainda existam depois da lavagem despectiva dos governos sucessores(27). Nenhum deles se deu ao empenho de erigir o monumento porque ainda estava fresca a ojeriza ao grande morto. Nenhum. Os que sucederam ao coronel Ramalho (e este está incluído no rol dos ingratos) faziam causa
comum com a atmosfera de antipatia à memória de Eduardo Ribeiro, e não duvidamos dé escrever a causa: eram ainda os velhos inimigos, os promotores das arruaças de 1892-1893. Outros apenas compraram a briga: Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt, Jônatas Pedrosa, Pedro de Alcântara Bacelar e o velho "chinês paliteiro" César Augusto do Rego Monteiro, o caloteiro-mor do funcionalismo, que por ocasião das festas da Independência do Brasil ofereceu aos gozadores sociais um baile à Segundo Império no Palácio Rio Negro, enquanto lá fora o povo morria de forne.
A propósito, cabem aqui mais duas versões sobre a morte misteriosa do dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro. Uma das mais antigas versões populares que conheci dizia que o.Pensador fora envenenado com um charuto. A segunda, só recentemente conhecida, afirma havê-lo sido "a mandado do barão de Santa-Anna Nery". Não apoiando a segunda , por muito incoerente, deixamos de lado a primeira por não comprovada. Entretanto ela é verossímil.
Tanto quanto a velha desconfiança de que fora envenenado com ervas trazidas de Santarém. O que não podemos deixar de confirmar é que havia dolo na afirmação "é preciso liquidar o negro". O que nos resta opinar, e isto é uma opinião pessoal, é que Eduardo Ribeiro deixou uma obra à vista, uma mensagem de sua capacidade criativa, enquanto muitos dos seus detratores só nos legaram leis, decretos, papéis, projetos, vítimas imoladas, empastelamentos de jornais, dívidas, calotes. Fazemos uma exceção para o coronel Constantino Nery: aí estão os ed ifícios da Biblioteca Pública e da Penitenciária, mas também ele se afundou nas negociatas dos empréstimos e da emissão de apólices, um craque nas rendas do Estado. Mas, à procura da verdade, devemos levar em consideração umas tantas circunstâncias ainda referentes à morte do dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro. Cerca de três meses após a assunção do cargo de governador do Estado, o sr. Silvério José Nery teria de haver-se com o problema da morte suspeita do dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro, o inimigo número 1 da família. As desconfianças se aproximam muito, embora não estejamos pretendendo afiançar nada de definitivo nem acusar ninguém sem provas. O sr. Silvério Nery dá o comando do Batalhão de Segurança ao major Adolfo Guilherme de Miranda Lisboa, comissionado tenente-coronel. O primeiro ato daquele péssimo cidadão amigo do dr. Constantino Nery é elaborar um relatório sobre o estado "indisciplinado e péssimo" dos soldados sob seu comando. Começou mal, numa sórdida vingança contra os mesmos soldados que puseram cerco ao 36° BI. Aliás, o caráter desse militar que depois passaria a superintendente da capital era repugnante: sua folha corrida acusava atos pregressos de violência inaudita, no Pará, e seria ele o comandador dos empastelamentos dos jornais de Manaus e do assassinato do primeiro jornalista manauara, Osvaldo Batista, do Correio do Norte, jornal da oposição. Nessa atmosfera de arbitrariedades, de assaltos ao Tesouro, de mandonismo e de politiquice desvairada feita na base da traição e do sabujismo, havia foliculários com capacidade de coragem para escrever o que segue, referindo-se ao sr. Silvério José Nery:

Por que os não deporta para o Rio Branco, como fez a Luís Galvez? Por que não os assassina, como fez ao malogrado Pensador? Por que não os vende a retalho como está fazendo ao Amazonas, hipotecado a ingleses e norte-americanos? - L. O.
(A Província do Pará, 10 de outubro de 1902).


Havia ambientação para o sinistro desfecho? Havia... O antigo alferes "parlamentar" Adolfo Guilherme de Miranda Lisboa, que muito serviria aos patrões Constantino Nery e general Bento, durante a sarrafascada de 1892-1893, agora dispunha de crédito politico, era cumpridor de ordens do governador Silvério. Enriqueceu, foi a Paris, foi nomeado superintendente da capital, deixou nome, construiu um palácio na Vila Municipal Operária e se foi depois. Cerca de cinqüenta metros adiante o coronel Constantino Nery mandou construir também o seu palácio, que ficou apenas nos muros, na esquina das ruas Teresina e Maceió. É que, como diz a sabedoria popular, "casa de esquina, morte ou ruína". O mandonismo expirou e com ele os frutos maléficos. Todos eles se foram, amaldiçoados pelo povo. Mas o coronel Constantino Nery teve sorte ma.is ingrata: dentro do seu palácio - sinfonia inacabada - cresceu uma árvore, que eu, ginasiano, cansei de ouvir dizer ser o "fantasma do velho Dinis"(28).
A alma humana possui uma individuação imprevisível. O mesmo militar que causaria tantos danos a pessoas físicas, em Manaus e Belém, seria, como superintendente de Manaus; um homem operoso. A ele se devem ma.is coisas dignas de mostradas do que ao sr. Silvério Nery governador e senador. Mas desejo especialmente referir aqui a lembrança que teve o superintendente Adolfo Lisboa (o Mercado Municipal leva seu nome na fachada) de ir a Paris e de lá trazer todos os ornamentos para o grande Carnavàl de 1902... E não era carnavalesco, a julgar o que dele escreveu o professor Agnelo Bittencourt: "(...) que foi um esquisitão, um hermético, espiritualmente trancado em si mesmo (...)".
E todavia dele se dizem outras maravilhas: mandou embelezar os bairros denominados Vila Municipal Operária (onde está o chalé estilo art nouveau, pelo povo conhecido corrio Castelinho) e a Vila Lisboa, no bairro do Plano Inclinado. Lá. construiu algumas casas para operários, bonitas residências que nunca foram de operários, realmente, e... apossou-se democraticamente de cinco mil contos de réis, de que jamais prestou contas, seguindo à risca as lições, ainda democráticas e republicanas, dos seus patrões.
Ejusdem farinae...

Há muitos anos foi-me dado de presente por descendente do cidadão Tecelino de Almeida uma coletânea de produçôes desse poeta, poucas em manuscrito, a maioria em recortes de jornais não-identificados. Eu andava interessado em resgatar a memória dos intelectuais da terra e consegui publicar pequeno livro sobre o sergipano Cid Lins, In memoriam de CidLins. Apenas há as iniciais T A., que não duvido sejam do citado poeta. Igualmente não podemos afiançar fosse publicado o soneto, muito descoberto o tema para ser ignorado dos janízaros da política persecutora. Tecelino de Almeida não era, creio eu, pelas informações obtidas de membros da família já distantes de sua época, um homem voltado à luta, nem mesmo daquela espécie de politico que se torna insensível às diatribes dos adversários. Se o poema abaixo transcrito foi publicado não houve repercussão, pois não consegui alcançar nenhuma nota de referência. Em todo 0 caso, vale como um documento à parte, pois é intransigentemente acusativo, não escondendo a participação criminosa da mente e da mão humanas. É de crer-se haja sido o soneto escrito sob a impressão primeira do impacto da morte do Pensador. É de acreditar-se também que ninguém esperasse aquele desfecho trágico. E sobretudo não resta nenhuma dúvida de que o povo jamais pôs crédito num autocídio. Não se apontavam nomes porque num caso semelhante em que a Justiça se empenhou em destruir as provas, nada restaria senão a suspeita tenaz, firme, imorredoura de que liquidaram o negro a fim de se pouparem à maledicência pública.

DIGNA CEDRO

Morreu o Pensador! É o dolorido
grito que se ouve em toda parte aflito,
no lar, na rua, como um eco, o grito
da revolta na dor humana ungido.

O silêncio da cova abscondito
guarda um mistério e o impune olvido
dos seus cruéis algozes, mas duvido
que o remorso se afaste do precito.

Era um justo e amou a terra estranha
que embelezou com seu trabalho insano,
dos maus ganhando a invejosa sanha.

A mão que o fulminou não tem memória,
mas a vítima aguarda lá no arcano
"á Justiça de Deus na Voz da História':..(29)

T. A.


Uma de nossas cruciais curiosidades veio a ser que tipo era o homem Eduardo Gonçalves Ribeiro. Pelas fotos mais expressivas, obtidas quando do apogeu, vê-se que seria baixo e entroncado, pois essa é a impressão que dá sua cabeça inteligente enterrada nos ombros, quase escondendo o pescoço. Alhures fizemos menção a uma possível semelhança, mas sua biotipia de moço não é idêntica à foto mais comum. Valemo-nos para registrar essa distinção do breve retrato que dele fez seu professor Manuel de Béthencourt, em artigo publicado no jornal A Federação de 18 de setembro de 1898, por via da passagem muito badalada do aniversário do Pensador, quando lhe foram prestadas muitas honras, até um banquete no Hotel de França.
Naquela altura, e pelo que salienta o articulista, Eduardo Ribeiro andaria pelos trinta e seis anos, pois nascera, como se disse antes, a 18 de setembro de 1862. Uma idade assaz conveniente para as grandes ilusões com a política e os homens. Manuel de Béthencourt alude de passagem à ingratidão dos homens.
O que nos interessa mesmo no artigo de três laudas e um terço, composição batida, é a imagem física de Eduardo Ribeiro, descrita sucintamente: dizia que há vinte anos, portanto em 1878, era ele articulista professor particular no Maranhão, quando um dia bate-lhe à porta um "rapaz de estatura mediana, magro, de voz abaritonada, fluente no dizer, rápido na emissão do pensamento". Eduardo Ribeiro queria estudar francês e matemática. Naquela altura deveria estar o pretendente com dezesseis anos, portanto era preparatoriano e estaria já com intenções de cursar a Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Na escola particular do professor Manuel de Béthencourt, segundo ele próprio o diz no artigo referido, já andavam os estudantes Pedro Freire, "que se nutria da leitura de Hugo"; Pacífico Cunha "alimentava-se com o credo transformista de Haeckel"; Domingos Machado "preludiava ao seu amor pela gramática e filologia portuguesa"; e Paulo Pereira "se deliciava com a feitura de uns versos". Só se fala no nome de Aluísio Azevedo de passagem, quando da comemoração do centenário de Luís de Camões. Essa plêiade possuía uma academia ou associação literária de que Eduardo Ribeiro era o presidente, talvez líder, associação que disputava o prestígio da atmosfera cultural do Maranhão com outra de igual teor onde Aluísio Azevedo era pessoa de influência. Desses jovens magnatas do pensamento eclético (o articulista deixa entender que seria assim mesmo), tanto o dr. Pedro Freire como Eduardo Ribeiro moviam-se sob a inspiração do triângulo e dos três pontinhos mágicos, ou da pá e compasso.
Um dos particulares da vida de Eduardo Ribeiro, envolvido em nebuloso mistério, é sua ascendência. Parece que ninguém quer falar ou ousa transpor os limites da confidência. Daí supor-se inevitavelmente que sua origem fosse do tipo daquela que humilhava o grande Machado de Assis, filho de lavadeira e de mata-cachorro. As palavras estigmatizantes do major Araripe naquele artigo transcrito parecem levantar a ponta do véu que obscurece o mistério: filho de quem, pobre e sem nome, fez-se gra~as a um estimulo interior, escravo com toda certeza alforriado e também arrastando uma tara que se manifestaria no homem adulto. E qual seria, ao fim e ao cabo, a impressão do major Araripe ao saber do "suicídio" do dr. Eduardo Ribeiro? Não possuímos nem motivos nem documentos para dizê-lo. O major Araripe manteve-se aparentemente em silêncio durante o resto de sua vida.

NOTAS

(28)
Trata-se certamente de Sebastião Dinis,
um dos mais antigos concessionários da
abertura da estrada carroçável Manaus-Rio
Branco e a quem os governos seguidamente
calotearam até a gestão do coronel Constantino Nery
inclusive e etc. e tal. A viúva, lesada em cerca de quatro
mil contos de réis, mexeu com todos os santos do
inferno e diabos do céu, mas nada recebeu de volta. O velho Sebastião
Dinis acabou esticando as botas e amaldiçoando os
Nery, com outros fornecedores do tipo daquele
português Florêncio Rodrigues de
Almeida, morto na miséria em Portugal. O
mesmo fim teve o construtor do Teatro Amazonas e de outras obras
majestáticas, Manuel Coelho de Castro.

(29) Essa "chave de ouro" emprestada é de um soneto
antológico de dom Pedro II no exílio, colocado na
ortografia moderna.






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